Aeroporto de Beja "vai ser necessário para complementar" Lisboa e Faro
19-02-2024 - 07:00
 • João Pedro Quesado

Doutorado em Economia dos Transportes, Manuel Tão não acredita que o problema dos aeroportos em Portugal seja resolvido nas próximas duas décadas. O especialista acredita que vai ser agora que a linha de alta velocidade vai sair do papel e que o efeito vai ser positivo até para a CP, que "faz aquilo que pode" com as infraestruturas e comboios disponíveis. Já os projetos de metrobus merecem a reprovação do professor universitário.

Que desafios Portugal enfrenta? Para responder a esta pergunta em tempo de eleições legislativas, a Renascença fez uma série de entrevistas temáticas, onde se inclui esta entrevista a Manuel Tão, sobre a mobilidade.

Veja algumas das entrevistas:


Vai ser preciso aproveitar o aeroporto de Beja para resolver os problemas dos aeroportos de Lisboa e Faro. A avaliação é de Manuel Tão, doutorado em economia de transportes e investigador da Universidade do Algarve, que critica o tempo perdido a discutir um novo aeroporto de Lisboa e considera que não faz sentido o Plano Ferroviário Nacional prever sistemas de metrobus.

Em entrevista à Renascença, a propósito das eleições legislativas de 10 de março, o especialista em mobilidade apontou que “seria bastante mais entusiástico” se a conversa fosse há 15 anos, e que “nestas coisas não há vazio” - a Espanha transformou o aeroporto de Barajas, em Madrid, num hub, e anunciou, em janeiro, um investimento de 2,4 mil milhões na expansão da infraestrutura até 2031 para 90 milhões de passageiros.

Manuel Tão considera que o atual aeroporto Humberto Delgado “vai viver e sobreviver por mais duas décadas”, até os problemas “quer na Portela, quer em Faro” obrigarem a “lançar mão” do aeroporto de Beja.

No capítulo da ferrovia, o doutorado pela University of Leeds está optimista que a linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa vai mesmo ser construída desta vez, porque “ou se aproveita agora” os fundos europeus “ou então nunca mais”, e assegura que a solução não está em melhorar a Linha do Norte – onde “já se gastou mais de metade do custo de uma linha completamente nova” sem obter melhorias operacionais significativas.

Não acredito que numa década este problema aeroportuário seja resolvido

O professor universitário pede um “plano diretor financeiro” subjacente ao Plano Ferroviário Nacional, para pelo menos “metade” do previsto “ser concretizado em 20 anos”, mas não concorda com a inclusão de sistemas de metrobus – autocarros articulados em via dedicada, separado dos restantes veículos. “São sistemas caros de implementar, têm custos operacionais elevados e não têm as vantagens de um sistema ferroviário”, aponta.

Sobre a CP, Manuel Tão concorda com a visão da empresa que a “infraestrutura é muito condicionante”, assim como a “falta de investimento em material circulante”. O especialista relembra que o mais recente comboio de longo curso é o Alfa Pendular, que começou a operar em 1999, e que os mais recentes comboios urbanos são de 2004.


O relatório preliminar da Comissão Técnica Independente apontou as localizações de Alcochete e Vendas Novas como as melhores para o novo aeroporto de Lisboa. Um dos pressupostos é o novo aeroporto ser um hub intercontinental. Faz sentido projetar esta infraestrutura assim?

A questão do hub não deixa de ter o seu interesse. A questão, penso eu, é saber se ainda vai a tempo, porque há um hub consolidado na Península Ibérica, que é Madrid – Barajas. Eu vou ser muito franco, se nós tivéssemos esta conversa aqui há questão de 10 ou 15 anos, eu seria bastante mais entusiástico do que sou hoje.

O que eu penso é que se perdeu tanto tempo, e nestas coisas não há vazios, há sempre quem aproveita. A Espanha trabalhou enquanto nós andamos a fazer estudos e discussões e portanto, à medida que o tempo vai passando, mais difícil se torna materializar a ideia de um hub lusófono em Portugal.

A questão de Alcochete ou a questão de Vendas Novas, do ponto de vista aeronáutica, não me vou pronunciar porque não domino questões técnicas a nível aeroportuário, embora não tenha dúvidas que tanto um como o outro, mas particularmente o Campo de Tiro de Alcochete, tem umas condições excecionais em termos de possibilidade de expansão. Ali fazem-se todos os aeroportos que se quiserem e mais alguns.

Mas há o reverso da medalha. É uma localização que fica fora de qualquer grande eixo estruturante de Portugal continental. Quando falamos de uma nova centralidade derivada de uma cidade aeroportuária, num sítio completamente novo, evidentemente que isso pode tudo fazer-se com acessibilidades completamente novas, criadas de raiz, mas a questão é não apenas quanto custa, mas quanto tempo leva a colocar no terreno.

Se pensarmos que o aeroporto de Alcochete vai implicar uma variante de alta velocidade que passa por lá, como uma nova travessia do Tejo, ferroviária, no Carregado, e a terceira travessia do Tejo entre Chelas e Barreiro... Claro que podemos argumentar que a terceira travessia do Tejo, com quatro vias ferroviárias no tabuleiro inferior e um tabuleiro superior para uma autoestrada de três faixas de cada lado, é uma coisa que se inscreve na mobilidade da Grande Lisboa e não exclusivamente na decisão ou não decisão de fazer um aeroporto ali, e é verdade. Mas estamos a falar de investimentos muito pesados.

Tem dúvidas que se consiga avançar com um novo aeroporto agora?

Estou convencido que a Portela vai viver e sobreviver por mais duas décadas. Quando viermos a ter problemas, quer na Portela, quer em Faro, vamos ter que lançar mão de uma infraestrutura que já existe, que é o aeroporto de Beja, independentemente de menos valias ou das mais valias que aquilo tenha. Vamos ter que construir acessibilidades para Beja ou reforçar as que existem particularmente a nível ferroviário, porque não vamos ter alternativa.

Se nós recuarmos até há seis anos, já com este governo, praticamente não tínhamos qualquer tipo de projeto de metrobus, nem sequer sob proposta. E depois, inexplicavelmente, surge um conjunto de propostas.

Muito pragmaticamente, vamos ser confrontados com uma incapacidade de realização nos próximos dez, 15 anos. Não acredito que numa década este problema aeroportuário seja resolvido, por vários fatores de constrangimentos financeiros, fatores de constrangimentos políticos, instabilidade política a nível dos próprios decisores e muito pragmaticamente, nós vamos ter que lançar mão daquilo que existe.

Uma ligação de alta velocidade Madrid – Lisboa pode competir com a ligação por avião e retirar procura aos dois aeroportos?

Depende do tempo de viagem que for oferecido. Com o cenário final do Plano Ferroviário Nacional, se for na região das três horas, sim, sem dúvida.

Aliás, há evidência empírica. A partir da altura em que toda a linha de alta velocidade entre Madrid e Barcelona ficou disponível, no ano de 2008, a maioria da ponte aérea entre Madrid e Barcelona desapareceu. Era a maior ponte aérea de toda a Europa.

Descendo à terra, acha que é desta vez que se constrói a linha de alta velocidade de Porto a Lisboa, mais de 30 anos depois do primeiro anúncio?

Eu penso que sim. Há dois fatores limite aqui, um é externo, outro é interno. O fator externo tem que ver com a disponibilidade dos fundos europeus. Das duas uma, ou se usam estes fundos europeus agora, ou nunca mais se usam, porque o cenário pós-2030 vai ser muito complicado. Vamos ter adesões de novos Estados-membro e vamos ter o problema da reconstrução da Ucrânia, e os fundos europeus podem estar em risco, pelo menos na forma à qual estamos habituados.

Mas depois há uma questão interna, que é a própria falta de capacidade da Linha do Norte, que é um eixo onde vão convergir outras linhas que se projetam para o próprio interior do país, como a Linha da Beira Alta, a Linha do Douro, e as linhas para o Algarve e para o Alentejo.

Não é possível melhorar mais a Linha do Norte? É um processo que decorre há várias décadas...

De uma forma objetiva, tecnicamente, cientificamente, a resposta é não. A Linha do Norte é algo que estruturalmente não tem solução e para a qual não vale a pena estar a atirar dinheiro. Aliás, já estamos a fazer isso há qualquer coisa como 30 anos e já se gastou mais de metade daquilo que é o custo de uma linha completamente nova.

Nem sequer outros operadores estão interessados em operar na Linha do Norte tal como ela está, porque de facto aquilo já não tem condições. Estamos numa situação praticamente de pré-ruptura da própria Linha do Norte, tal como estivemos com a Estrada Nacional 1 no final dos anos 1980.

Esta linha pode ser o catalisador para finalmente existir uma verdadeira rede ferroviária em Portugal?

Em parte, sim. Em absoluto, não é suficiente. Mas é um caminho, no sentido de que, se nós tivermos de facto um tronco Norte-Sul que seja muito rápido, nós vamos transmitir essa rapidez a todas as outras linhas que derivam desse tronco, mesmo que não haja grandes investimentos nessas linhas.

A Espanha trabalhou enquanto nós andamos a fazer estudos e discussões.

Isto tem consequências a nível da intensificação de viagens e da forma como nós interagimos com o território. Escusado será dizer, entre Setúbal e Braga nós vamos ter a possibilidade de nos deslocarmos em duas horas. Isto é uma revolução muito grande a nível do mercado imobiliário e a nível do mercado empresarial.

O Plano Ferroviário Nacional apresenta um cenário final em que teremos não só o eixo de alta velocidade em desenvolvimento, de Lisboa para Vigo, como a ligação de Lisboa a Madrid, ao Algarve e Sevilha e ainda de Aveiro a Salamanca. São estes os eixos em que faz sentido haver alta velocidade em Portugal?

Definitivamente que o eixo Lisboa Vigo, que é o Corredor Atlântico, e uma ligação para Madrid são ambas inquestionáveis em termos de estruturação. Os outros eixos, enfim, já se fizeram estudos preliminares, e o que se passava era que a capacidade de geração de tráfego desses eixos era insuficiente para eles tivessem um retorno socioeconómico aceitável.

Entretanto, isto pode mudar. Temos que nos lembrar que os estudos da RAVE são dos anos 2000 e nós já estamos em 2024. O tempo vai passando e as próprias necessidades, digamos assim, já vão se modificando.

O mesmo plano prevê algumas linhas novas além destas, como a linha do Vale do Sousa, que insere no sistema metropolitano norte litoral. Mas depois propõe um sistema de transporte ligeiro, em metrobus, a ligar a Póvoa de Varzim a Famalicão, Guimarães, Fafe e Braga, e ao fim da linha do Vale do Sousa, em Felgueiras. Faz sentido estar a criar um novo sistema, separado da ferrovia pesada?

Penso que não. Os sistemas de metrobus são sistemas caros de implementar, depois têm custos operacionais elevados e não têm as vantagens de um sistema ferroviário. Não creio que seja sensato que estejam ligados ao Plano Ferroviário Nacional. Penso que há uma deriva, digamos assim, no que diz respeito a propostas de sistemas de metrobus.

Muitos deles não têm qualquer sentido, como entre Leiria e Marinha Grande, onde já existe a Linha do Oeste. Coisas como, por exemplo, um metrobus de Olhão para Faro é um delírio que não tem qualquer tipo de sentido e é paralelo à atual linha ferroviária.

A perda dos serviços internacionais tornou Portugal particularmente isolado em termos de ligações ferroviárias ao resto da Europa.

É muito misterioso, porque se nós recuarmos até há seis anos, já com este governo, nós praticamente não tínhamos qualquer tipo de projeto de metrobus, nem sequer sob proposta. E depois, inexplicavelmente e sem qualquer tipo de racionalidade económica, surgem um conjunto de propostas de metrobus que são completamente desenquadrados das necessidades de mobilidade.

Em meados de janeiro, a CP rebateu as conclusões de um relatório da AMT acerca da qualidade do serviço, nomeadamente a pontualidade, apontando as obras de modernização em curso como causa dos atrasos. A CP tem problemas operacionais, ou faz apenas o que pode na infraestrutura atual?

A CP faz aquilo que pode. A infraestrutura é muito condicionante da CP, como é condicionante da Fertagus, como é condicionante dos próprios operadores ferroviários de mercadorias. Nós temos um resto daquilo que foi uma rede ferroviária. Temos muitos problemas de concentração de tráfego em muito pouco e muito poucas linhas.

Eu dou razão à Comboios de Portugal. Eles estão condicionados, quer pela falta de investimento em material circulante do acionista Estado, os Governos e este também, em particular nos últimos oito anos, tem responsabilidades diretas no sub-investimento da CP e tem responsabilidades diretas a nível da infraestrutura.

Depois, o próprio material circulante... O material circulante de longo curso mais novo que nós temos e que não foi comprado em segunda mão é o Alfa Pendular, que foi apresentado ao público na Expo 98. Já lá vão 26 anos. É um material que já tem uma certa idade.

O que é que a CP pode fazer melhor?

Algo que faz uma falta particular, e que já vem desde há três anos, é a inexistência de uma ligação noturna quer a Madrid, quer à fronteira francesa. A perda desses serviços internacionais tornou Portugal particularmente isolado em termos de ligações ferroviárias ao resto da Europa, enquanto a própria França tem avançado gradualmente com a linha de alta velocidade a sul de Paris, e já chegou a Bordéus.

Temos qualquer coisa como três ou quatro Intercidades de Lisboa para a Guarda por dia. Um desses comboios pode ir até Salamanca, porque em Salamanca nós temos serviços de alta velocidade que nos põem em Madrid em 1h30. Como é que por 170 quilómetros nós não conseguimos com os nossos comboios chegar durante o dia a um sítio como Salamanca? É frustrante.

Depois do saneamento da dívida histórica da empresa, a alta velocidade pode ajudar a CP a passar a ter meios próprios, por via de lucros antes da compensação do contrato de serviço público, e assim fazer a empresa desenvolver-se?

Eu penso que sim. Neste momento, no longo curso e por via até das diretivas europeias, a CP já não tem subsídios.

O caminho de ferro de passageiros neste país tem uma quota de mercado geral de 4%. Quer dizer, em cada 100 viagens, apenas quatro se fazem de comboio. O único local que é diferente é o corredor de Setúbal para Braga. Nesse corredor, a quota de mercado é o dobro, passa para 8%. Mesmo assim, é uma coisa muito pequena.

O que nós vamos ter com a alta velocidade são quotas de mercado nesse corredor que vão suplantar os 30%. Não tenho quaisquer dúvidas que o balanço final, quer para a própria CP, na qualidade de operadora comercial de longo curso, quer para os outros que vierem concorrer com ela, globalmente, será benéfica para todos eles.

Medidas como o Passe Ferroviário Nacional são um subsídio à procura numa altura em que a CP não consegue responder e aumentar a oferta?

A intenção do Passe Ferroviário Nacional é realmente boa. É boa, como foi bom o passe metropolitano de 40 euros que nos permite ir da Azambuja até Setúbal. Agora, a oferta não cresceu na medida idêntica daquilo que foi o embaratecimento dessas viagens.

Isso pode ser contraproducente. Nós estamos a incentivar, bem, a utilização de um determinado serviço, mas isso é apenas parte da medida que devia ter sido levada a efeito, porque se mantemos o serviço com uma oferta que não vai atender à nova procura que é gerada, isso pode levar a ter uma degradação do próprio serviço.