Imagine o leitor que em Portugal se abria uma discussão acerca da permanência do país no Acordo de Paris sobre alterações climáticas. Um debate público acalorado em que haveria naturalmente defensores da permanência de Portugal no acordo que recomenda restrições às emissões poluentes, por um lado, e defensores do abandono do acordo alegando que essas restrições prejudicam o desenvolvimento económico e a criação de emprego, por outro.
Agora imagine que entre os defensores do cumprimento do acordo estava o presidente da GALP e entre os defensores do abandono estava o ministro do Ambiente. Impossível, certo? Impossível talvez em Portugal. Mas possível nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos que há sete meses elegeram Donald Trump para presidente.
A situação pode parecer surreal a quem não acompanha a política americana, mas é exactamente isso que se passa actualmente na América.
Depois de Trump ter avisado que anunciaria a sua posição sobre o Acordo de Paris esta semana, vários media americanos avançaram esta quarta-feira que o presidente já terá decidido retirar os EUA do acordo, cumprindo uma das promessas eleitorais mais emblemáticas da campanha.
Basicamente o argumento do candidato Trump era que as restrições às emissões de carbono recomendadas pelo acordo são prejudiciais ao crescimento económico e à criação de empregos. Sobretudo porque ele entende que boa parte do relançamento económico de que o país necessita terá de assentar na recuperação de sectores tradicionais como a metalurgia pesada e as minas. Uma economia que regresse à utilização massiva de carvão, uma das fontes de energia mais poluentes.
Esta “receita” veio sempre acompanhada, no discurso de Trump, por um profundo desprezo pelas alterações climáticas, que chegou a dizer tratar-se de um embuste inventado pelos chineses para prejudicar a competitividade da economia americana.
Coerente, pois, com tal posição, Trump escolheu para dirigir a Agência de Protecção do Ambiente (equivalente ao Ministério do ambiente) um homem cuja actividade como jurista se destacou pelos inúmeros processos judiciais que pôs contra aquela agência, contestando os seus poderes e a aplicação das suas directivas a nível estadual. E que desde que tomou posse tem tido como acção principal revogar medidas de combate à poluição aprovadas pela anterior administração. Uma delas foi permitir às indústrias que despejem os seus dejectos em cursos de água, por exemplo.
Scott Pruit, de seu nome, é hoje um dos maiores defensores junto do presidente do abandono do Acordo de Paris para o Clima e a ele se juntam nomes como o de Steve Bannon, conselheiro conotado com a extrema-direita, Mitch McConnell, líder dos republicanos no Senado, e mais 21 senadores, entre outros.
Mas a administração Trump está muito dividida nesta matéria. A favor da manutenção no acordo estão a filha Ivanka, o genro Jared, o secretário de Estado Rex Tillerson, o conselheiro económico Gary Cohn, entre outros. O presidente tem ouvido argumentos de ambos os lados com destaque para o mundo empresarial, supostamente aquele que sairia mais prejudicado com a permanência no acordo.
Empresários por Paris
No entanto, para surpresa do próprio Trump, são justamente os maiores empresários que têm defendido o respeito por Paris. Contestam o argumento de que a indústria é prejudicada pelo acordo, contrapondo que insistir no investimento em sectores tradicionais poluentes é a estratégia errada porque vai atrasar a competitividade da economia americana.
Entre esses empresários está o CEO da petrolífera Exxon Mobil, Darren Woods, que substituiu Rex Tillerson no cargo quando este foi nomeado secretário de Estado. Woods defende que só mantendo-se no acordo é que os EUA podem influenciar a gestão futura de energia. E garantir que todos os tipos de fontes se mantêm em actividade num mercado aberto e global, em igualdade de circunstâncias e de concorrência para assegurar o crescimento da economia com um mínimo de danos ambientais. Falou mesmo com Trump ao telefone, mas além disso escreveu-lhe uma carta a explicar o seu ponto de vista.
Não foi a única carta a intervir no debate. Alguns jornais publicaram há dias um anúncio assinado por vários gigantes empresariais a advogar que “ao expandir o mercado das novas energias limpas, o acordo gera empregos e crescimento económico e as empresas americanas estão bem colocadas para liderar nesses mercados”. Apple, Microsoft, Google, Facebook, Intel, HP, Levi Strauss, Gap, Morgan Stanley, Unilever são algumas das signatárias.
Com a Exxon Mobil aconteceu mesmo esta quarta-feira algo inédito. Numa assembleia de accionistas, a maioria dos detentores do capital votou a favor da divulgação pública do impacto que a actividade da empresa tem no aquecimento global, em que medida é que cumpre os parâmetros de emissões a que se propôs. Uma decisão que contrariou a vontade dos gestores.
É neste ambiente cada vez mais sensível ao problema do aquecimento global que Donald Trump se prepara para abandonar o Acordo de Paris, caso se confirmem as notícias publicadas. Se o fizer, perderá desde logo um dos seus consultores, um empresário por quem tem grande admiração e por isso o convidou para ser seu consultor externo. Trata-se do multimilionário Elon Musk, fundador da Tesla e da Space-X, que já revelou que, caso Trump saia de Paris, não lhe resta outra hipótese senão demitir-se das funções de aconselhamento informal do presidente.
Com o argumento de que as recomendações do acordo prejudicam o crescimento económico do país, Trump vê aqueles que são supostamente os maiores prejudicados dizerem-lhe publicamente que não receiam as consequências de Paris, mas até pelo contrário as acham benéficas para a economia.
Que argumentos?
Que argumento resta então a Trump para sair de um acordo que só não foi assinado pela Síria e pela Nicarágua, perguntar-se-á. Politicamente porque foi uma das principais promessas da campanha e a saída vai-lhe permitir cumprir a promessa, satisfazendo o seu eleitorado. Socialmente porque para recuperar empregos nas indústrias tradicionais poluentes, a administração não pode estar preocupada com níveis de emissão de carbono na atmosfera. Tecnicamente porque ficar no acordo inibe a administração de avançar com medidas que visam desmantelar os regulamentos ambientais aprovados por Obama, argumentam os defensores desta opção.
Um ponto contestado pelos opositores, que lembram que Paris é um acordo que não impõe metas rígidas a cada país, limitando-se a avaliações periódicas e a uma sensibilização colectiva para atingir o objectivo global de não aumentar a temperatura mais do que 1,5 graus centígrados até meio do século.
Se as pressões internas são muitas para manter a América no acordo, as externas já Trump sentiu nas cimeiras da NATO e do G-7 em que participou na semana passada. Todos os parceiros com quem dialogou lhe pediram que mantivesse o país no acordo e a eles juntou-se esta terça-feira o secretário-geral da ONU, António Guterres.
Numa intervenção na Universidade de Nova Iorque, Guterres considerou “absolutamente essencial” combater a subida da temperatura e acrescentou que se algum país não cooperar neste desígnio isso é razão para os outros países se unirem ainda mais no objectivo. Sem nomear qualquer país, o recado estava dado. Veremos se Trump o escutou.