Era a conferência de imprensa mais esperada dos últimos anos na América. Donald Trump já não respondia a perguntas dos jornalistas desde Julho passado, algo inédito na história moderna da democracia americana. Mas aquilo que deveria ser um momento de esclarecimento ao público americano sobre as inúmeras dúvidas que pairavam acabou por ser mais um momento de auto-elogio, auto-satisfação e auto-propaganda do Presidente eleito.
Uma das questões mais sensíveis respeitava à Rússia, naturalmente. Depois de andar meses a dizer que duvidava que a Rússia estivesse na origem da pirataria informática de que foi vítima o Partido Democrata durante a campanha eleitoral, Trump reconheceu que afinal era Moscovo que estava na origem do “hacking”.
Mas não só não explicou como tinha chegado a tal conclusão, o que o tinha feito mudar de ideias, como menos explicou por que tinha durante meses rejeitado tal tese, afirmada e reafirmada pela comunidade de "intelligence" americana.
E mal admitiu que tinha sido a Rússia a autora da pirataria informática desvalorizou o assunto, dizendo que era só mais um caso num país que estava demasiado exposto ao “hacking”, exemplificando com a “fuga” de 22 milhões de arquivos de dados pessoais e de entidades várias para países estrangeiros nos últimos anos.
O ineditismo deste caso russo de interferir directamente com uma campanha eleitoral americana não lhe mereceu qualquer comentário. Tal como não lhe mereceu qualquer resposta uma pergunta sobre se tinha havido quaisquer contactos entre responsáveis da sua campanha e o Kremlin durante o ano passado.
Disse, contudo, que Vladimir Putin não deveria ter feito o que fez e garantiu que a Rússia respeitará mais os EUA a partir do momento em que chegar à Casa Branca. Mas insistiu na necessidade de ter uma boa relação com o Presidente russo e adiantou que “se Putin gosta de Trump isso é uma vantagem, não uma desvantagem. Não sei se conseguirei entender-me com ele, mas espero que sim”.
Mas logo a seguir, no seu estilo inconfundível, lançou: “Há alguém aqui que pense que eu não serei mais duro com a Rússia do que seria Hillary Clinton? Não brinquem comigo!”.
Como que para afastar suspeições nesta matéria, garantiu que não tem quaisquer negócios ou empréstimos com a Rússia e portanto não haverá conflito de interesses. Uma afirmação que não pode ser verificada, porque Trump não divulga a sua declaração de impostos, alegadamente porque está sob auditoria do fisco. Repetiu este argumento, que foi desmentido durante a campanha eleitoral pelo fisco, que declarou que a auditoria não impedia a revelação da declaração.
O caso da pirataria informática serviu ainda a Trump para dizer que vai acabar com esta vulnerabilidade dos EUA, juntando os melhores especialistas informáticos para estudar soluções, e que uma avaliação da situação será feita em 90 dias e recomendará medidas a tomar.
Pelo caminho voltou a criticar fortemente as agências de "intelligence", responsabilizando-as pelas fugas de informação para os media, que considerou “triste” e “vergonhoso”. E num tweet anterior disse-se vítima de perseguição e chegou a comparar a situação à da Alemanha nazi.
Império com os filhos
O outro tema controverso da conferência de imprensa foi a gestão das suas empresas. Como se esperava, Trump confirmou que o seu império empresarial passará a ser gerido pelos filhos e não por um “blind trust”. Presidentes como Jimmy Carter, Ronald Reagan ou George Bush entregaram a gestão de todos os seus bens, antes de entrarem na Casa Branca, a um fundo cujos gestores são anónimos e só retomaram o conhecimento da situação financeira quando deixaram o cargo.
Com Trump será diferente. O novo Presidente deixa os filhos a tratar do império e compromete-se a não falar com eles sobre o assunto. Haverá um escolhido que supostamente zelará pela ética de comportamentos nesta matéria.
Entretanto, assegurou que pôs termo a mais de trinta negócios que estavam pendentes e que não haverá novos negócios no estrangeiro. O Presidente eleito é suposto só tomar conhecimento de negócios das suas empresas pelos media, nunca pelos filhos.
Uma advogada de Trump explicou na conferência de imprensa que um “blind trust” foi rejeitado por duas razões: primeiro, porque uma organização operacional como o império Trump não é gerível por um “blind trust”; segundo, porque não havia ninguém suficientemente competente nesse modelo de gestão.
Estes argumentos são, contudo, refutados por vários especialistas, que não vislumbram qualquer transparência no modelo anunciado por Trump. Antes de mais, um “blind trust” pressupõe a venda das empresas e a gestão apenas dos fundos financeiros daí resultantes, algo que Trump recusou.
Por outro lado, o facto de as empresas continuarem a ser geridas pelos filhos não elimina conflitos de interesses, uma vez que a administração terá de tomar inúmeras medidas – investimentos públicos, reduções ou aumentos de impostos, isenções fiscais, acordos comerciais, levantamento ou aplicação de sanções a países terceiros, etc. – que necessariamente afectarão o seu império empresarial.
Isto dando de barato que Trump nunca falará com os filhos sobre os negócios de família, algo que jamais poderá ser fiscalizado ou comprovado, apesar de ter anunciado a nomeação de alguém para zelar pelo cumprimento de tal compromisso ético. Alguém que será um funcionário de Trump.
Como que para sublinhar o distanciamento que terá em relação aos negócios, Trump anunciou ainda que os lucros que os seus hotéis tiverem com comitivas de governos estrangeiros serão doados ao Tesouro americano. Note-se que estes montantes são uma gota de água no negócio global do seu império.
Vários especialistas ouvidos pelos media americanos classificaram como “inapropriado” todo este modelo de gestão de negócio, que abre a hipótese de virem a ser investigados inúmeros potenciais conflitos de interesse durante o seu mandato na Casa Branca.
Quanto a outros pontos abordados na conferência de imprensa, Trump primou pelo não esclarecimento, mantendo o registo habitual de propaganda que usou durante a campanha.
Reiterou que vai construir o muro na fronteira com o México e que este país o pagará, sem explicar como.
Garantiu que vai acabar e substituir o Obamacare, “talvez em simultâneo, talvez no mesmo dia”, mas não explicou que modelo de sistema de saúde vai implementar.
E entre inúmeros elogios à equipa governativa que está a formar – “gente fantástica, gente cheia de talento, a melhor equipa já formada” – autodefiniu-se como o presidente que “será o maior criador de empregos da História”.
As eleições foram no dia 8 de Novembro e a tomada de posse será no dia 20 de Janeiro.