​Ajudar ou partilhar: as assimetrias e as oportunidades da Covid-19
03-05-2020 - 07:20

Que a pandemia afecta de forma diferente os diferentes sexos é uma realidade incontornável. A mortalidade das mulheres parece ser significativamente menor mas, por outro lado, a violência sobre as mesmas, maior…

Entre o dia do trabalhador e o dia da mãe, resolvi escrever um artigo sobre as mulheres no trabalho… Hoje, pela situação excepcional que vivemos sou uma mãe muito mais presente, sou uma filha muito mais ausente, arranjei um novo emprego (doméstica), trabalho muito mais horas do que trabalhava uma vez que não tenho as rotinas criadas pelos horários e, faço tudo isto com brancas, sem verniz nas unhas e vestida informalmente, uma vez que a roupa formal representa mais um obstáculo às minhas competências de lavar e de passar a ferro…

Que a pandemia afecta de forma diferente os diferentes sexos é uma realidade incontornável. A mortalidade das mulheres parece ser significativamente menor mas, por outro lado, a violência sobre as mesmas, maior… Os estudos, poucos até à data, parecem indicar que as mulheres serão mais afectadas pelo desemprego que se avizinha, mas, por outro lado, em casa não têm um minuto livre, uma vez que, na maioria das vezes as consequências da declaração de situação de emergência que, resultou no encerramento das escolas e em mudanças significativas nos padrões de trabalho, afectaram de forma desproporcional as mulheres. Mas, de facto, as políticas projetadas para responder aos surtos parecem ser de “gênero” neutro, fazendo, no fundo, tábua rasa de todas estas desigualdades e, partindo do pressuposto errado que os homens e as mulheres serão infectados e afetados de forma igual.

Nas últimas semanas, à medida que a força de trabalho global se mudou para a Internet, a realidade da vida das pessoas passou a estar muito mais exposta: a cama desarrumada ao fundo, os copos sujos no aparador ou a criança que insiste em interromper a reunião. Por outro lado, entre as guerras com o aspirador entre duas reuniões de zoom, o estender a roupa, que tal como o pó tem nestes dias tem o dom da multiplicação ao infinito, entre duas aulas online ou, ainda mais exigente…acompanhar as crianças com o ensino à distância enquanto mantemos os auscultadores e meio cérebro na reunião de trabalho…quais equilibristas do Cirque du Soleil…À medida que o confinamento se estende de semanas a meses, este equilíbrio impossível torna-se ainda mais desafiante e os possíveis impactos negativos para a saúde mental e física, não serão, por certo, despiciendos.

Assim, esta janela indiscreta para a dualidade das nossas vidas terá, por certo de ter consequências. A primeira, terá de incluir mudanças dentro das estruturas familiares; se é evidente que nos últimos anos, tal como reforçado no Livro Branco Homens e Igualdade de Género em Portugal , assistimos a mudanças profundas; no entanto, tal como sublinhado, o movimento de entrada dos homens no universo da produção doméstica e da parentalidade cuidadora é um factor eminentemente geracional. Ou seja, este movimento terá que ser mais inclusivo; a necessidade de alterar o verbo “eu ajudo” para “eu partilho” é, sem dúvida, uma exigência. Em segundo lugar, esta pandemia ao expor a vida dupla das pessoas deverá ser encarada como uma oportunidade para aumentar o trabalho flexível e, mais importante, criar a consciência que a maioria de nós vive esta dualidade entre trabalho remunerado e não remunerado constante que tem, obrigatoriamente que ser reconhecida pelos governos e pelas entidades empregadoras.

A Primeira Guerra Mundial foi um momento decisivo para a emancipação das mulheres; esperamos que a Covid-19 possa ser outra oportunidade para uma maior igualdade de entre os sexos na distribuição de tarefas em casa e um alerta importante para o desenvolvimento de políticas que permitam, eficazmente, a conciliação entre a família e o trabalho e o reconhecimento da necessidade premente de remunerar trabalho que, normalmente, está confinado entre quatro paredes. Mas, para que isso seja possível, precisamos de parar de pedir desculpas por termos a casa desarrumada, por não termos o cabelo impecável ou por termos as crianças ou as(os) adolescentes a interromper as reuniões de zoom...



*Ana Sofia Carvalho, Professora do Instituto de Bioética Universidade Católica Portuguesa

** Ilustração: Maria Sá Couto