​"China não quer uma guerra, mas quer os americanos fora do Leste Asiático"
16-04-2021 - 17:00
 • José Pedro Frazão

Em entrevista à Renascença, a especialista em assuntos chineses Helena Legarda defende que as relações entre a China e a Europa estão num ponto de viragem, porque a Europa já percebeu que China representa muito mais que um parceiro económico. Nesta conversa, analisa ainda as possibilidades de uma guerra EUA-China e a relação de Pequim com a Índia.

A três semanas da cimeira entre a União Europeia e a Índia, agendada para a cidade do Porto, a Fundação Gulbenkian organizou, esta sexta-feira, uma conferência sobre as relações entre a Europa e a Ásia. Em entrevista à Renascença, uma das oradoras convidadas, Helena Legarda, diz não acreditar numa guerra entre Washington e Pequim, mas admite conflitos sérios no Leste Asiático e Indo-Pacífico.

A investigadora do Instituto Mercator de Estudos Chineses, em Berlim, defende que as relações entre a China e a Europa estão num momento crítico. O clima esfriou entre as partes, apesar de muitos estados-membros manterem estreitas relações com Pequim.

O acordo mútuo de investimentos entre a União Europeia e a China foi um momento importante nas relações recentes entre os dois blocos. Como classifica neste momento essa relação?

O acordo-quadro sobre investimento foi um desenvolvimento importante, mas é importante recordar que as relações entre a Europa e a China estão num momento crucial. Observámos algumas mudanças bastante substanciais na forma como a Europa olha para a China. A agenda económica tem dominado amplamente as relações de Bruxelas e dos estados-membros com Pequim desde o estabelecimento de relações diplomáticas em 1975.

Durante muito tempo, isso levou a uma narrativa sobre as oportunidades económicas que a ascensão da China representava, a par da narrativa de uma "esperança" de convergência da China com os sistemas políticos europeus e os valores potencialmente liberais. Durante muitos anos, a Europa deixou efetivamente de lado as considerações geopolíticas, de segurança e estratégicas quando se tratava das suas relações com Pequim.

Nos dias de hoje há uma clara mudança. Os investimentos continuam a ser os principais motores do relacionamento, mas as questões políticas e de segurança estão agora em primeiro plano. Na minha opinião, isso é uma consequência das mudanças dos últimos anos e a primeira é simplesmente a nova política externa da China que passa por metas e ambições internacionais e uma maior assertividade, o que não é necessariamente novo, mas que está a tornar-se cada vez mais evidente desde que Xi Jinping chegou ao poder em 2013.

De uma perspetiva europeia, observamos com mais frequência o impacto dessa assertividade global e das ambições internacionais da China face aos interesses e valores da unidade europeia. Basicamente, sentimos a ascensão da China de uma forma mais próxima.

No passado, quando se debatiam questões estratégicas ou geopolíticas sobre a China, faziam-no com muita frequência sobre Taiwan ou o Mar do Sul da China. Geograficamente era bastante distante para muitos Estados-membros europeus, que não tinham presença na região do Indo-Pacífico. Neste momento, através dos investimentos chineses na Europa, da aquisição de empresas, relações mais próximas com a Rússia, iniciativas como a Faixa e Rota (Belt and Road Initiave) ou a 17+1 (que junta 12 países europeus, cinco estados dos Balcãs e a China) sentimos a China mais perto da Europa.

Houve a noção de que a expansão internacional da China, com as suas ambições globais, tem impacto nos interesses e na segurança da Europa. Isso foi um pouco uma espécie de sinal de alerta para a Europa. Estar concentrada apenas no lado económico da equação não é suficiente. A China é um ator global demasiado grande, com demasiadas ambições grandes, para ignorar o lado estratégico e geopolítico das coisas. Outro elemento importante a ser levado em consideração é a deterioração das relações entre os Estados Unidos e a China. Começou naturalmente na administração Trump, mas continuou à medida que as tensões geopolíticas e a concorrência sistémica aumentaram.


Muitos analistas sugerem que muitos países têm que fazer uma escolha entre alinhar com os Estados Unidos ou com a China. Agora que a administração Biden vê alguma uma mudança na abordagem a esse debate?

Acredito que tanto os Estados Unidos quanto a China gostariam, idealmente, que a Europa tomasse partido. No documento de Visão Estratégica (“Strategic Outlook”) que a Comissão publicou em 2019, a ideia não é tomar partido, mas sim tentar encontrar um meio-termo independente, o que não significa equidistância. A Visão Estratégica define a China como um parceiro de cooperação, um concorrente económico e um rival sistémico, tudo ao mesmo tempo.

A ideia de um rival sistémico é promovida por modelos de governança que colidem com os valores e interesses europeus. Mas ainda há oportunidades para cooperação, quando se trata de relacionamentos com Pequim. Mas não se trata aqui de ser equidistante.

A Europa, por definição, tem necessariamente muito mais em comum com os Estados Unidos em termos de valores, de abordagens para a ordem global ou do sistema internacional baseado em regras. Portanto, não se trata de ser completamente neutro e ficar no meio, mas de reconhecer que, embora a China represente alguns desafios para os interesses e segurança da Europa, ainda existem áreas onde a cooperação é possível.

Quão real pensa ser a perspetiva de um conflito muito forte entre os EUA e a China, para não lhe chamar uma guerra? Nesse contexto, a Europa terá de tomar uma posição.

Absolutamente. E isso é uma grande preocupação para todos os envolvidos. É difícil dizer se haverá ou não uma guerra. O que posso dizer é que acho que nenhuma das partes envolvidas quer uma guerra. A China realmente não quer uma guerra com os Estados Unidos neste momento. Os Estados Unidos não quer uma guerra com a China.


Por que é que que a China não quer essa guerra?

É uma combinação de fatores. O objetivo fundamental do Partido Comunista da China é a sobrevivência e estabilidade do regime. É preciso ter isso em mente, portanto não querem ir atrás de qualquer coisa que prejudique esse objetivo. Em primeiro lugar, não há garantia de que a China venceria uma guerra contra os Estados Unidos.

Em segundo lugar, haveria um envolvimento internacional muito substancial nessa guerra e potencialmente uma reação internacional posterior. Portanto, não é realmente do interesse da China decidir avançar para uma guerra.

A China não está disposta nem é capaz de substituir os Estados Unidos como uma superpotência global. Não é isso que a China deseja alcançar neste momento em particular. Eles apenas querem ter um papel mais central na ordem global que querem reformar de forma a que o modelo chinês, os valores, princípios e abordagens da China sejam aceites.

Não se trata de substituir os EUA e, portanto, uma guerra não seria uma ajuda. Mas embora a China não esteja à procura de uma guerra com os Estados Unidos, a China está definitivamente a preparar-se para um "conflito limitado" na região do Indo-Pacífico.

Os pontos mais sensíveis a ter em conta aqui são sobretudo Taiwan e o Mar do Sul da China. Ambos representam interesses centrais para a China, para o Partido Comunista e estão muito ligados à legitimidade do partido e, portanto, à sobrevivência e à estabilidade a longo prazo do regime. É nesses dois pontos críticos que o conflito é mais provável. Não estou a dizer que vai acontecer, porque acho que nenhum dos lados o deseja, mas a China tem objetivos e ambições muito claros no que diz respeito à reunificação de Taiwan, idealmente até 2049, data do 100º aniversário da fundação da República Popular da China. E a China também tem ambições muito claros sobre o Mar do Sul da China.

E neste último conflito, a ideia realmente passa por dominar a região?

A ideia da China é basicamente retirar os Estados Unidos da vizinhança próxima e tornar-se uma espécie de ator principal naquela região, que inclui o Mar do Sul da China, que reclama como seu território, mas também o Mar da China Oriental e toda a área em torno de Taiwan. Há o conceito de "cadeia estratégica de ilhas", da primeira e da segunda ilha, que os pensadores estratégicos e legisladores chineses utilizam, em torno de cadeias de ilhas geográficas cuja área a China deseja controlar, incluindo a própria cadeia. Quem controlar essa cadeia de ilhas pode bloquear que a China e impedir o acesso ao Oceano Pacífico.

Portanto, sim, a China gostaria que os Estados Unidos deixassem o Leste Asiático e idealmente todo o Indo-Pacífico. O Mar do Sul da China é um caso ligeiramente diferente porque a China trata-o como o seu próprio território soberano.

Como define a relação entre Índia e China?

As relações entre a Índia e a China estão um pouco melhor agora, mas têm estado bastante tensas nos últimos meses e até alguns anos por causa dos conflitos na fronteira em Ladakh.

Houve agora um acordo de retirada de tropas que parece estar a funcionar bem. Mas claro que há uma série de questões não resolvidas quando se trata de estabelecer as fronteiras entre os dois países. Isso parece ter mudado pelo menos a abordagem da Índia em relação à China. Sou especialista em assuntos da China e não da Índia, mas a Índia tem sido historicamente bastante cautelosa para não tomar partido. Não faz alianças e mantém boas relações com todas as partes envolvidas.

Tenho visto uma pequena mudança e, por exemplo, houve uma reunião recente de líderes do chamado Diálogo Quadrilateral de Segurança (QUAD, que junta Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália) onde foi discutida uma maior cooperação para confrontar a assertividade da China na região do Indo-Pacífico. A Índia parece estar envolvida nisso. Acredito que as ações da China na fronteira empurraram a Índia um pouco mais para o QUAD e para os Estados Unidos. E o secretário-geral da NATO disse há poucos dias que gostaria de ver mais cooperação entre a NATO e a Índia na região do Indo-Pacífico e vem aí a Cimeira União Europeia - Índia. Portanto, a China parece ter empurrado a Índia na direção oposta à que realmente queria.

A menos de um mês da cimeira da União Europeia com a Índia, o que acha que a Europa quer da Índia e vice-versa?

Uma das questões passa pelo facto da Índia ser uma das maiores democracias do mundo e definitivamente a maior na Ásia e por isso ser um parceiro natural e importante para a União Europeia, tanto em termos de questões políticas e geoestratégicas, mas também economicamente. Não tem havido muito envolvimento formal com a Índia ao nível da UE. Alguns Estados-membros, como por exemplo Portugal, em parte por causa de laços históricos, têm tido algum relacionamento mais com a Índia. Mas ao nível da UE isso não foi tão formalizado. Penso que há uma tentativa de o fazer, sendo a Índia um parceiro natural e a UE querendo tornar-se um pouco mais autónoma em termos estratégicos.

Um outro aspeto, que não é mencionado com frequência no contexto destas conversas sobre a Europa e a Índia, é uma espécie de elefante na sala chamado China. São as ambições globais da China, as suas atividades no Indo-Pacífico e a consciência de que a Índia e a Europa têm interesses semelhantes no que diz respeito ao Indo-Pacífico.

Vemos, por exemplo, que agora há uma tentativa de desenvolver uma estratégia Indo-Pacífico em Bruxelas, ao nível da UE. Alguns estados-membros, como a Alemanha, a França ou os Países Baixos já publicaram as suas próprias estratégias nacionais, mas não há nenhuma tentativa de criar um processo para publicar uma estratégia à escala da UE.

O que acontece no Indo-Pacífico é realmente importante para os valores e para a segurança da Europa, porque terá um grande impacto na ordem internacional baseada em regras. Portanto, a Europa precisa de estar mais envolvida. A Índia é um país que não pode ser ignorado dentro desse contexto.

A China sabe que há diferença entre os países da UE sobre as relações com Pequim. Muitos analistas acham que a presidência alemã da UE estava muito interessada no acordo de investimento por razões do interesse alemão. Pensa que a divisão entre estados-membros em relação à China é profunda?

Há obviamente diferenças bastante substanciais em como os vários Estados-membros abordam a China. Isso é bastante óbvio e também parcialmente compreensível. Os Estados-Membros têm os seus próprios interesses e fazem os seus cálculos políticos.

No último ano vimos já um pouco mais de convergência. A forma como a China lidou com a pandemia de Covid-19, principalmente no início, com muita opacidade e depois a politização pela China das encomendas de material médico para a Europa no ano passado, empurrou muitos países para um pouco mais de convergência e desencadeou um pouco mais de ceticismo na Europa no que diz respeito às relações com a China.

Isso não significa que haja acordo absoluto. Por exemplo, em alguns países da Europa Central e Oriental que são membros da iniciativa 17+1 e aderiram à Iniciativa Faixa e Rota (“Belt and Road”) as opções são diferentes. Repare, por exemplo, para a discussão das vacinas chinesas na Europa e para os países que as estão a comprar ou a sinalizar que o farão, enquanto outros países se afastaram completamente delas.

Há diferenças, mas parece que estamos a caminhar em direção a uma maior convergência. Mencionou o acordo sobre investimentos que foi muito promovido pela presidência alemã e isso é absolutamente verdadeiro. Mas agora ainda tem que ser aprovado pelo Parlamento e não está claro se o será, porque a situação mudou muito rapidamente. Em particular, a imposição de sanções pela China a uma série de organizações e indivíduos europeus em resposta à utilização pela UE do seu novo regime global de sanções de direitos humanos para castigar autoridades chinesas mudou mais uma vez o debate um pouco na Europa.

Não é claro que o acordo seja aprovado. Este será um longo processo que teremos de ver, mas as relações da Europa com a China estão agora num ponto de viragem. Vejo uma tendência para maior convergência na Europa, sobre o facto de que a China representa claros desafios para a Europa e individualmente para os estados-membros e sobre a necessidade de unidade europeia para enfrentar esses desafios de forma eficaz.