Os índices de mortalidade do inverno deste ano têm feito lembrar, pelas piores razões, os tempos da covid-19. Comparando com o ano passado, em que já nos encontrávamos numa fase conclusiva da pandemia, o contraste é ainda superior.
A véspera de Natal marca o início de um período de excesso de mortalidade, interrompido apenas esta terça-feira, quando pela primeira vez o número de mortes foi inferior ao expectável, afirma o médico e investigador da Nova-SBE, José Miguel Diniz.
Nesses 16 dias, houve vários com mais de cem mortes em excesso e “no total, contabilizaram-se 1002 mortes” acima do esperado. O dia mais letal foi o 2 de janeiro com 550 óbitos e um excesso de 129.
Em comparação com o último ano, para alcançar algo semelhante seria necessário juntar os meses de dezembro de 2022 com Janeiro e Fevereiro de 2023, durante os quais se verificou um total de “1110 mortes em excesso”, acrescenta o investigador.
O que justifica então um aumento tão significativo da mortalidade?
Gripe A e diminuição da imunidade do grupo
No centro das atenções tem estado o surto de gripe A. Só na chamada semana 52 (a última do ano que passou) " foram identificados 1372 casos positivos para o vírus da gripe do tipo A e 49 casos do tipo B”, segundo dados oficiais.
Logo à partida, a predominância da gripe A é uma má notícia pois trata-se de uma estirpe “de contagiosidade muito fácil e particularmente patogénica, mais severa sobretudo para os grupos de maior vulnerabilidade”, explica Paulo Santos.
O antigo presidente do colégio de medicina geral e familiar da Ordem dos Médicos e atual professor e investigador da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto lembra que tem sido precisamente na faixa etária acima dos 70 anos que a incidência do excesso de mortalidade tem sido maior.
No entanto, Paulo Santos admite que o aparecimento deste surto "não é uma surpresa" e que estará relacionado com “alguma baixa da imunidade de grupo”, que o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, num relatório de dezembro, justifica com a “aplicação generalizada de medidas não farmacológicas durante a pandemia de COVID-19”. Uma circunstância que a campanha de vacinação, que passou a ser feita nas farmácias, não foi capaz de debelar, visto as taxas de inoculação continuarem abaixo dos valores do ano passado.
A procura do serviço de urgência, pelo menos na sua afluência, parece ser semelhante ao que aconteceu no ano passado
Às urgências têm assim chegado casos mais graves e “a taxa diária de atendimentos urgentes com internamento” indica José Miguel Diniz “está a atingir picos de 12%, que eram valores que já não se verificavam desde Janeiro de 2021, portanto no expoente máximo, por assim dizer, da pandemia de covid-19”.
Este contexto já por si pouco favorável, terá sido potenciado pelos fatores ambientais típicos da época do ano. O frio é apontado muitas vezes como um dos responsáveis pelo aumento da incidência de doenças respiratórias, mas o médico e investigador da Nova-SBE está sobretudo preocupado com a humidade.
Até ao momento, e de uma maneira geral, o frio "apresenta-se como um fator que não parece ser dos principais responsáveis. No entanto, por outro lado, a humidade e mais especificamente, a humidade mínima relativa este ano apresentou valores marcadamente mais elevados do assistimos no ano passado. O ano passado estaria entre os 55% e os 70%, na maioria do país. Atualmente temos valores entre 80% e os 100%".
Tempo de espera aumenta 60%
Assim, de um lado temos o crescimento da incidência das doenças respiratórias próprias da época e que são difíceis de gerir, mas no outro prato da balança há também a forma como o Sistema Nacional de Saúde se está a organizar perante esta crise e quanto a isso Paulo Santos é perentório: “As coisas não foram sendo feitas em tempo certo” e houve uma “incapacidade da tutela em fazer a reorganização destes cuidados de saúde”.
O investigador da FMUP defende mesmo que não existe uma sobrecarga de utentes nas urgências, considerando “normal” que os serviços estejam superlotadas em dezembro e janeiro. E sustenta-se em números: excluindo os anos de pandemia, que não podem servir de referência, “há muitos anos [que] temos 6,5 milhões de episódios de urgências”, valor idêntico ao esperado para este ano.
Na realidade, “a procura do serviço de urgência, pelo menos na sua afluência, parece ser semelhante ao que aconteceu no ano passado”, explica José Miguel Diniz. O investigador de Economia em Saúde da Nova-SBE, acrescenta ainda que a afluência de casos menos urgentes (com pulseiras brancas, verdes ou azuis) foi mesmo menor do que em anos anteriores.
Ao mesmo tempo, tem-se assistido a um “aumento bastante considerável” do tempo médio de espera entre a triagem e a primeira consulta médica. Considerando a totalidade dos episódios de urgência, o valor ultrapassa os 157 minutos, mais 60% que no ano passado. Para José Miguel Diniz isto é sugestivo “de uma dificuldade em dar resposta aos utentes”.
“Se não tivermos pessoal, o modelo não funciona"
Paulo Santos pede que se aprofundem as razões para o aumento da mortalidade e menciona erros no processo de reorganização dos serviços de cuidados de saúde empreendido pela Comissão Executiva do SNS.
“Nos últimos 15 dias, três semanas, tivemos uma enxurrada de despachos e portarias e de novos regulamentos, novas leis que vão de facto mudar aquilo que é o funcionamento dos serviços de saúde em Portugal. E eu penso que [esta] será a pior altura do ano para se promover uma reorganização dos serviços de saúde”.
Um dos principais problemas que continua por resolver e que tem grande impacto na qualidade do serviço é a falta de profissionais.
[Esta é] a pior altura do ano para se promover uma reorganização dos serviços de saúde.
“Se não tivermos pessoal, o modelo não funciona. E, de facto, o Ministério da Saúde tem demonstrado uma grande dificuldade em conseguir reter as pessoas. É aqui que as coisas estão de facto a falhar, o que faz com que as pessoas se estejam a afastar do Serviço Nacional de Saúde", lamenta Paulo Santos.
José Miguel Diniz alerta que a convulsão vivida pelo SNS nos últimos meses não contribui para uma resposta adequada aos doentes. “A verdade é que houve serviços de urgência que reduziram a sua disponibilidade assistencial, tiveram as suas equipas diminuídas. Era interessante perceber o impacto que isso poderá ter tido efetivamente no acesso aos cuidados e, em última análise, e mais relevante as consequências em saúde para a população”.
É cedo para tirar conclusões definitivas sobre as causas do pico de mortalidade deste inverno, mas algumas das pistas deixadas por estes especialistas apontam para melhorias que devem ser introduzidas no sistema de saúde de forma a prevenir futuras crises. Recomendações que não chegam a tempo de suavizar o agravamento da situação nas urgências que é esperado para os próximos dias.