Ao longo do último ano de pandemia, o número de casos de crianças com cancro não registou aumento digno de assinalar. Em Portugal, todos os anos são diagnosticados cerca de 400 novos casos. Os diagnósticos e tratamentos continuaram a ser feitos nos hospitais de referência, mas a Covid impôs um distanciamento difícil de cumprir pelos profissionais de saúde, famílias e doentes.
Com esforço, foi preciso gerir a situação, tanto mais que os momentos de recreio que aliviam os internamentos ou os exames e tratamentos também desapareceram. Ou por outra, todos tiveram de se adaptar ao distanciamento.
O ensino à distância foi a única coisa que as crianças com doenças oncológicas não estranharam: para elas, já era normal.
Estas foram algumas das questões discutidas este sábado no 7.º Seminário de Oncologia Pediátrica, organizado pela Fundação Rui Osório de Castro, uma organização que assume como prioridade a aposta na informação das famílias e no apoio à Investigação na área do cancro pediátrico.
A falta que fazem os beijinhos e abraços
“O meu serviço passou a parecer-se com um hospital, sem cor, sem brinquedos, sem as educadoras, sem os palhaços, sem as crianças”, revelou Filomena Pereira, diretora do Serviço de Pediatria do IPO - Instituto Português de Oncologia, de Lisboa logo no início do 7º Seminário de Oncologia Pediátrica, organizado pela Fundação Rui Osório de Castro.
A médica definiu o ano de 2020 como um “camião TIR que nos atropelou a todos”. E se o impacto da pandemia no número de novos casos diagnosticados e de crianças em tratamento e internamento foi “quase residual”, o “peso” revelou-se noutras áreas, sobretudo nos constrangimentos, nas regras de segurança mais apertadas, no medo, que “pode ser paralisante. Há ali qualquer coisa, o medo da proximidade – mesmo num grupo com segurança – que nos tira a humanidade”.
Ainda assim, confessou que “nenhum de nós tirou do colo uma criança que está habituada a vir para o nosso colo na consulta”.
Patrícia Cayette, mãe da Frederica, de cinco anos, em tratamento no IPO de Lisboa, assumiu que no início havia uma tendência para dizer à filha para se afastar e que não podia tocar em nada ou ninguém. “De repente, até ela se sentia estranha porque há uma grande humanização em todos os profissionais e não sentimos essa distância”.
Por isso, considera que “o grande desafio é tentar minimizar a ausência do afeto, do contacto e da aproximação a crianças que, por um lado não têm consciência do que estão a passar na sua doença, não percebem o que se passa no mundo ou se percebem, precisam de um apoio extra para minimizar a dureza da doença”.
Para Manuel Brito, diretor do Serviço de Oncologia do Hospital Pediátrico de Coimbra, é claro que o distanciamento levou a uma desumanização dos contactos em pediatria. E lembrou que os mais pequenos têm tendência para imitar o que vêm nos adultos. E o que vêm agora são as máscaras, a necessidade de estarem separados, quase como se isso fosse o normal. “Se calhar, a seguir, temos que os ensinar que os beijinhos e os abraços também são importantes na nossa vida”.
Este acabou por ser um dos grandes obstáculos apontados por quase todos os intervenientes: médicos, professores e educadores, palhaços, membros de associações como a ACREDITAR e de diversas mães de crianças com cancro.
Em alguns dos quatro hospitais de referência para o tratamento do cancro pediátrico (IPO de Lisboa e Porto, Hospital de S. João no Porto e Hospital Pediátrico de Coimbra) as salas de atividades ficaram “despidas” de brinquedos e pessoas.
Mas crianças, pais e profissionais tiveram também de passar pelos maiores constrangimentos no acompanhamento às crianças internadas. Passou a ter de ser apenas um familiar ficar em permanência, sem poder sair. Posteriormente, os serviços acabaram por aligeirar a “prisão”, como lhe chamou um pai, revelou Ana Maia, do IPO do Porto.
Esta responsável referiu ainda as dificuldades em gerir o acompanhamento das crianças em fim de vida. “Foi mais difícil, mas arranjámos soluções para que os elementos mais importantes da família, nomeadamente, irmãos, se pudessem despedir. Temos feito um grande esforço para nos irmos sempre adaptando às necessidades e temos conseguido”, afirmou a diretora do serviço de Pediatria do IPO do Porto.
Vem aí um tsunami de dificuldades económicas e sociais
Ana Maia exteriorizou também o receio quanto ao impacto que a pandemia vai ter nestas crianças, “ainda não estamos a ver. Mas já sinto um forte impacto económico nas famílias e neste ponto, as associações têm um papel muito importante”.
É o caso da ACREDITAR – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. Telma Sousa, gestora da Região Centro assumiu que “já estamos a sentir um tsunami de dificuldades que vem aí com uma força que desconhecemos, de afetos, mas sobretudo, sociais e económicas. Algumas são extremas e já estamos a tratar disso”.
A Associação passou a ter de dar mais apoio económico às famílias, nomeadamente àquelas que se viram a braços com situações de lay-off ou perda de emprego. Ao nível alimentar, o apoio passou a ser feito em cartão, em vez dos tradicionais cabazes.
Também a ACREDITAR teve de mudar a forma de apoio às famílias, já que os voluntários deixaram de poder ir aos hospitais ou às Casas de apoio. “Tivemos de nos adaptar porque não conseguíamos dar abraços e beijinhos. A apoio passou a ser feito com as novas tecnologias, com grupos de Whtsapp ou webinars informativos.
Por outro lado, o confinamento fez a Associação avançar com uma nova valência de apoio psicológico – complementar ao hospitalar – para as crianças, irmãos e pais, não só na fase de tratamento mas também após e, se for necessário, para o luto.
A brincadeira torna tudo mais leve para todos
“O lúdico e a brincadeira ajudam a esquecer temporariamente a doença e até podem ajudar os profissionais de saúde se, recriando uma situação por que vai passar, a criança se tornar um agente ativo. A brincadeira deve ser recreativa, terapêutica e educacional”, diz Cátia Tomás, educadora do IPO de Lisboa.
Cátia Tomás admite que agora é tudo mais difícil, “estamos ali muito fechados e para estar com uma criança, não posso estar com as outras, quando antes, se faziam atividades com várias. E confessa que acaba por dar “muito colinho aos bebés, passeio com eles, tiro-os um bocadinho do quarto. Sinto que estou numa bolha, eles estão lá também e estamos todos seguros”.
Em condições normais, as salas de atividades estariam cheias de animação. A do IPO ficou “despida” durante meses. “Quando voltámos havia um ambiente cinzento, mas agora já tem alguma cor, diz Marta Carvalho, que veste a personagem da Super Doutora Ginjação, na Operação Nariz Vermelho. “Já é tudo nosso outra vez”. E revela a descoberta de que afinal a expressão (agora tapada com a máscara) não é tão importante. “Com os olhos podemos dizer tudo”.
Mas neste último ano, também os palhaços tiveram de se adaptar. Tal como muitos outros, passaram para o digital, com cada um a fazer dois vídeos diários, recorrendo aos meios domésticos e a muita criatividade para animar as crianças internadas.
O Rodrigo, com cinco anos, está “confinado” desde 2019. Agora está melhor e já quer correr e andar, diz a mãe, Anabela Soares. Mas no início deixou de andar, não aceitava os voluntários nem os palhaços, só queria brincar com os pais. O tablet e os jogos eram os grandes companheiros.
Foi a pensar nestas crianças que Hernâni Zão Oliveira criou o projeto “HOPE”. Com este jogo interativo no tablet, a criança transforma-se num super-herói para vencer o cancro. Além disso, introduziu um algoritmo que o obriga a alguma atividade física.
“A ideia é envolver a criança na lógica de que aquilo que está a fazer é bom para ela, apesar de não perceber bem porque é que vai para o IPO com uma dor de barriga e daí a algum tempo está sem cabelo, está amarelada e mais fraca. Parece uma contradição na cabeça da criança. Há informação que tem de ser dada, os pais também acabam por estar confusos e não saber como fazer”.
Este é um “jogo sério” com ferramentas para o entretenimento, mas que aumentem o conhecimento sobre um determinado tópico”, explica Hernâni Zão Oliveira. E vai ser lançado no mercado em breve.
Aulas à distância: a normalidade que a COVID trouxe
“Agora, estão todos em pé de igualdade”, diz Magda Cabral, uma das três professoras do IPO de Lisboa, que acompanham crianças e jovens, desde o 1º ao 9º ano de escolaridade.
As aulas por vídeo-conferência já eram incentivadas, em colaboração com as escolas de origem. “Quem é bom aluno, continua a ser, apesar de estar internado e nesse período se sentir mais cansado e debilitado pelos tratamentos. Quem não é, aproveita muito o nosso apoio individual”, explica Magda Cabral, admitindo que com os mais pequeninos, se torna difícil.
Em casa continuam a precisar de apoio, que está previsto num despacho conjunto de 2017, criado na sequência de uma reunião com a ACREDITAR, informou o Secretário de Estado Adjunto e da Educação, que também participou no Seminário.
“A crianças que já estão numa situação clínica frágil, não podemos tirar-lhes o que é bom, que é ir à escola. Estes apoios acabaram por antecipar o confinamento, não começaram em março de 2020”.
E perante as dificuldades relatadas pela mãe Andreia Barbosa em relação ao acompanhamento da escola ao seu filho Martim, o Secretário de Estado frisou que os apoios existem e estes alunos beneficiam deles, em função de uma situação clínica e da previsão de longa duração no seu uso. Este ano, sete famílias de crianças com cancro já pediram este apoio.
João Costa revelou ainda que atualmente há 52 professores a apoiar crianças em hospitais ou domicílios
O Seminário de Oncologia Pediátrica incluiu também apresentações sobre a investigação na área e os vencedores do prémio anual Rui Osório de Castro.
Ao longo do dia houve ainda tempo para momentos lúdicos para os mais pequenos, com palhaços e leitura de contos.