Frei Bento Domingues olha para a atualidade portuguesa com preocupação e, em especial, para a situação da Igreja. “A Igreja portuguesa tem muitas coisas interessantes, mas também não soube ter olhos abertos para aquilo que iria ser paralisante, que era o de não revelar essa tragédia, esse horror, esse nojo da violação sexual das crianças”, afirma o dominicano em entrevista ao podcast "Avenida da Liberdade" da Renascença.
Na sua opinião, “é evidente” que os casos de abuso são “aproveitados pelos inimigos”, mas frei Bento Domingues, de 89 anos, lembra “não são os inimigos que criaram isto. A igreja é que não soube ter olhos abertos, e isso, paga-se caro”.
Fatura alta é também aquilo que a Igreja irá pagar pela Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2023), que Lisboa acolhe em agosto deste ano. Segundo as palavras de frei Bento Domingues “vai ser um acontecimento e acabou”.
Questionado sobre se será uma oportunidade perdida, o dominicano afirma: “Acho que poderiam ter encontrado soluções descartáveis para o acontecimento” e critica aquilo a que chama de “ligeireza e improvisação cara”. No seu entendimento Portugal vai acolher “uma coisa bonita” que padece da “mania das grandezas”.
O 25 de Abril à distância de um telefonema
Foi em Roma, através de um telefonema vindo da Alemanha, feito por um amigo, um antigo jesuíta, que o dominicano frei Bento Domingues soube que o 25 de Abril de 1974 estava em marcha. A notícia fê-lo sair à rua, mas não em clima de festa ou euforia como o que se vivia em Lisboa.
Recorda: “A Universidade de São Tomás de Aquino está mesmo em frente aos Fóruns Romanos. Eu, para sopesar o que estava a acontecer, não tinha mais informações, fui para os fóruns romanos meditar um bocado, porque eu não podia entrar. Estavam cancelados os voos para Lisboa”.
Não foi fácil regressar a Portugal. Viajou primeiro para Madrid. Só chegou para o 1.º de Maio de 1974 a Lisboa e encontrou um país diferente. “Aquilo para mim foi muito esquisito”, lembra frei Bento Domingues. Na manifestação em Lisboa encontrou um amigo de longa data da luta católica contra a Guerra Colonial, em defesa dos presos políticos, o arquiteto Nuno Teotónio Pereira.
Além de ouvir o amigo, o dominicano gravou nas memórias também os discursos de Mário Soares e Álvaro Cunhal. “Era tanta gente! Digo: ‘Oh, Meu Deus!’, antes do 25 de Abril era um horror para esconder uma pessoa que andava a ser perseguida e, agora, tanto revolucionário!”
Antes do 25 de Abril, frei Bento Domingues tinha pertencido à Comissão de Defesa dos Presos Políticos, ao lado de Sophia de Mello Breyner e de outros nomes da cultura, como o compositor Fernando Lopes Graça, o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, a artista Maria Keil, Luís Cintra ou Palma Carlos.
“O que tinha de especial, essa Comissão, era que havia vários grupos e cada um tratava dos seus presos. E era impressionante, porque a gente sentia o horror que eram as cadeias e, sobretudo, as torturas”, recorda.
Da Capela do Rato ao exílio
Na passagem de ano de 1972, em pleno regime marcelista, também ao lado da poetisa Sophia de Mello Breyner, frei Bento Domingues esteve na Capela do Rato onde uma manifestação pela paz acabou com presos pela PIDE.
Lembra que até desaconselhou tal encontro. “Disse, o grupo é muito frágil, está muito vigiado, e temos alimentado uma ideia tonta como são católicos, a polícia respeitará mesmo sendo presos”. Mas os seus conselhos não foram escutados. A Capela do Rato encheu-se e a polícia acabou por levar presos alguns populares e o padre Janela.
Para frei Bento Domingues, “foi um momento muito importante, porque a repercussão que teve na Assembleia da República, com a Ala Liberal, passou a ser uma referência”.
Nas memórias do passado em ditadura, o frade guarda também o episódio de uma exposição no Porto que organizou em torno do Concílio do Vaticano II que chamou a atenção da PIDE. Foi na sequência desta mostra que acabou por ter de sair do país, tendo ido parar a Roma durante a reunião magna da igreja.
“Sem passaporte”, viveu “fascinado” os dias de exílio, porque foi parar ao epicentro do pensamento, do que estava a acontecer em Roma durante o Concílio do Vaticano II. Estas são algumas das memórias registadas pelo podcast "Avenida da Liberdade", da Renascença, que tem sonorização de André Peralta e edição de Maria João Costa pode escutar nas plataformas habituais.