A infância de Jorge Silva Melo marcou boa parte da primeira “Conversa sobre Deus” que encheu a Capela do Rato, em Lisboa. O cineasta contou como foi despertando para a fé católica. Numa família onde o pai “era o tradicional republicano, jacobino e mata-frades”, e a mãe mantinha “um catolicismo social, de baptizados, casamentos e festa”, acabou por ser influenciado pela rebeldia da irmã, 12 anos mais velha, e que era profundamente católica.
A passagem pelo colégio dos maristas, para onde foi com seis anos, não lhe deixou boas recordações, mas foi aí que ouviu pela primeira vez a história da transfiguração, que o marcou até hoje. “Deus fez-se homem, e há uma altura em que o homem vai revelar o seu esplendor divino”.
"É uma história que me encanta”, diz, e que também o fez amar o teatro: “Isto foi uma cena de teatro fantástica, lá no alto da montanha, Jesus chamou dois profetas, Moisés e Elias, ou seja, não só fez o teatro de si próprio, como fez o teatro histórico, trouxe as personagens históricas, aqueles que vieram antes dele, que O anunciaram.”
“Também é por causa desta história que a minha profissão nunca foi muito bem vista na Igreja, porque nós ousamos fazer aquilo que só Jesus pode, que é tranfigurarmo-nos”. E acrescentou: “Criador é só Deus e os artistas. Nós roubámos essa palavra, por isso nunca somos muitos bem vistos. Nós, os do teatro, somos sempre olhados um bocadinho de soslaio”.
O cineasta e encenador contou como também o marcou ter visto, ainda miúdo, o filme “Quo Vadis”: “Fiquei fascinado com aquele catolicismo primitivo, era uma religião que se opunha à religião dos poderosos que me era ensinada no colégio, castigadora, da culpa. Eu fiquei encantado com os pobrezinhos que estavam nas catacumbas”.
Houve também livros que considera fundamentais na sua vida, como as “Florinhas de São Francisco” e os de Simone Weil, que já lia em francês. “Percebi que era tudo muito diferente da religião que me era ditada, martirizada e crucificada no colégio”.
Os colegas ouviam Pink Floyd, ele queria “ser militantemente católico”
Jorge Silva Melo explicou que o que sempre o atraiu na fé católica “foi o amor e o perdão” e que nunca seria protestante: “Eu quero pertencer a uma comunidade que se centra no perdão e nunca na culpa, e no amor como fonte de criação.”
“A ideia de que é possível perdoar o mal que fazemos, e que fazemos todos os dias, é uma coisa que me transcende, acho isso absolutamente maravilhoso, voltarmos a partir do zero. A vida recomeça com o perdão e esse perdão é feito do amor. São princípios do catolicismo.”
Em 1968, Jorge Silva Melo foi bolseiro da Gulbenkian na London Film School: “Quando todos os meus colegas estavam a ouvir Pink Floyd, e nos êxtases extrasensoriais, eu queria ser militantemente católico”.
Gostava das idas à missa numa igreja onde não conhecia ninguém. Houve uma altura em que ia com o amigo Luis Miguel Cintra, que estava a estudar em Bristol. No regresso a Portugal, fundaram os dois, em 1973, o Teatro da Cornucópia. Foi “uma grande aventura” e um marco na sua vida: “A minha saída foi uma dor de que ainda não me refiz.”
Jorge Silva Melo está a trabalhar neste momento num filme autobiográfico, e vai levar a cena a “A Noite do Iguana”, de Tennessee Williams. Trabalhos criativos feitos “a meias com Deus”: “Vou fazer o Tennessee Williams com a Maria João Luis porque a amo e entendo-me bem com ela. São horas felizes de ambos e superamo-nos. Ela dá-me mais do que lhe dou e eu dou-lhe tranquilidade, e isso é Deus, é a tal historia do perdão e do amor. Quando estou a trabalhar nos ensaios estou a dar atenção aos actores, que é o que Deus me pede. Isso é o amor.”
As "Conversas com Deus", conduzidas por Maria João Avillez, prosseguem na próxima terça-feira com Assunção Cristas. As restantes, até 16 de Dezembro, serão sempre à quarta-feira, às 21h30, e os convidados vão ser Marcelo Rebelo de Sousa, Maria de Belém, Fernando Santos, Pedro Mexia, Carminho, Henrique Monteiro, e João Taborda da Gama.
Esta é uma iniciativa da Capela do Rato, com o patrocínio da Renascença.