Ana Avoila, coordenadora da Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública, tem encontro marcado na segunda-feira com a ministra da Modernização do Estado, Alexandra Leitão. Em cima da mesa está um aumento extraordinário acima dos 0,3% para uma parte dos funcionários públicos.
O “Público” já noticiou que a garantia por parte do Governo de que os aumentos da função pública seriam superiores a 0,3% foi essencial para garantir a abstenção do PCP na votação no Orçamento do Estado (OE) para 2020. Isso não significa que o Governo já tem o que quer e que, portanto, as rondas negociais de segunda-feira serão uma fachada?
Não são uma fachada porque elas existem, mas é a continuação de uma postura que já não era boa e que esta ministra veio agravar. A ministra convocou os sindicatos com um ofício de forma ilegal, porque não cumpriu os prazos que tinha que cumprir, e a propor aos sindicatos que pedissem a negociação suplementar que só pode ser pedida depois de um processo negocial estar concluído.
A lei da negociação na administração pública diz que a negociação começa a partir de dia 2 de setembro, com propostas de um lado e do outro lado, e que, tendencialmente, deve acabar antes da votação final do OE, ou seja, até aí têm de discutir quais são as verbas que vão estar presentes numa rubrica do OE para se poder fazer os aumentos salariais. Isto não aconteceu. A ministra marca uma reunião para dia 10 depois da votação do OE? Naturalmente, que é fora de horas. Vamos lá estar, mas lamentamos muito.
E preparam-se para sair a meio?
Não. Não sei o que é que vai sair de lá. Pedimos à ministra que nos enviassem as propostas, como manda a lei da negociação. Ninguém sabe o que vamos encontrar. O ministério não enviou nada, nem respondeu nada. Esta é uma prática que se instalou dentro da administração pública. É uma falta de cultura democrática, uma falta de respeito pelos trabalhadores, mais do que pelos sindicatos. Isto é lamentável e cria indignação nos trabalhadores.
Disse que aumentos salariais da função pública de 0,3% são uma proposta insultuosa. Se, como tudo indica, for um pequeno aumento nos dois escalões mais baixos da função pública isso será o quê? Uma proposta vergonhosa ou só tímida?
É uma proposta provocadora. Por causa do aumento do salário mínimo, o Governo, no passado, em vez de atualizar a primeira posição da tabela remuneratória única, para depois fazer a devida proporcionalidade até ao fim como a lei manda, não o fez.
O ano passado foi o cúmulo. Pôs os 635 euros na quarta posição e não na primeira. O Governo sabe perfeitamente que no ano passado, com os 635 euros, criou uma situação que é inaceitável e incomportável em termos de relações humanas dentro dos locais de trabalho. 635 para quem está há 30 anos e 635 para quem entra, não pode ser!
Queixa-se que a falta de respeito pelos trabalhadores tem sido uma constante. Mas este Governo reverteu várias medidas do Governo de Passos Coelho. Não está a ser injusta com António Costa?
Não. Reverteu medidas de Passos Coelho e de Sócrates. Perdemos o nosso estatuto sócio-profissional com o Governo de Sócrates. Foi ele que cortou e congelou salários. Claro que no tempo da troika aquilo foi fartar vilanagem.
Valorizamos o que de positivo este Governo fez relativamente à função pública: as 35 horas, a reposição do corte nos salários, mas não houve a atualização dos escalões de IRS. Estamos com uma perda de poder de compra de 133 euros desde 2009.
Não me parece que sejamos ingratos quando o Governo teve uma possibilidade que dificilmente vai ter. Tinha na Assembleia da República uma correlação de forças e acordos conjuntos que lhe permitiriam ter ido muito mais longe. Em vez de ter optado pelos patrões, podia ter optado pelos trabalhadores. Não somos ingratos, somos realistas.
A UGT queixa-se que este Governo não liga ao sindicalismo. Também faz a mesma crítica?
Sim. Não respeita mesmo. É uma cultura que tem vindo a ser implementada na administração pública nos últimos governos. Isto não é só marcar reuniões. Na troika, tivemos sempre reuniões. É o que é dito e como são apresentadas as propostas. Às vezes, fazemos propostas e o Governo não se digna sequer a fazer uma contraproposta.
Não há então muita diferença entre Mário Centeno e Vítor Gaspar?
Não há. Eles os dois estão para o mesmo objetivo, tanto que um está lá com um posto e este também está. São pessoas das Finanças, muito bons para dar aos grandes grupos económicos com o argumento de que querem construir um país sem défice. Não vejo grande diferença. Nós na administração pública, não sentimos diferença nenhuma entre um e o outro. Um fez uma grande carga fiscal e este ainda não a tirou, não é?
Também não há diferença entre Mário Centeno e Alexandra Leitão?
Conheço-a mal. Mas certamente que vai haver diferença. Um ministro das Finanças, presidente do Eurogrupo, tem certamente uma postura diferente que tem uma ministra como Alexandra Leitão. Mas a questão aqui é o todo. Tudo o que se faz é aprovado em Conselho de Ministros e a partir daí são todos responsáveis. As Finanças, por norma, puxam muito pelos seus trabalhadores, mas puxam muito pouco pelos trabalhadores dos outros ministérios.
Está a falar da Autoridade Tributária (AT).
É um mundo. Tem que ter muitos trabalhadores especializados, valorizados. Mas não passa pela cabeça de muita gente que anda por aí a fazer críticas o que é um trabalhador da AT em determinado posto. É muito complicado. Em relação às Finanças, era bom que alguém visse por que é que muitos processos de dívidas prescrevem. Há dívidas fiscais que prescrevem sem justificação nenhuma.
Estamos a meio da votação do OE. Como militante do PCP, não acha que o partido tem conseguido fazer valer mais a sua voz negociando caso a caso, como agora, do que com o acordo escrito da geringonça na legislatura anterior?
Não. São coisas diferentes. Para a administração pública, está a ser quase tudo chumbado.
A Ana Avoila vai reformar-se, deixa a Frente Comum, Arménio Carlos sai de secretário-geral da CGTP no congresso da próxima semana. Há novos sindicalistas que assegurem a transição. O que é preferível agora para a CGTP, voltar a ter um secretário-geral com alguma experiência, mas que só pode ficar quatro anos ou procurar já alguém mais novo?
Não há nenhum problema e somos muitos a sair, mais de 50 no conselho nacional e sete ou oito na comissão executiva. Com 50 anos, a CGTP tem vindo sempre a evoluir e tem vindo a dar resposta aos problemas. Relativamente a quem dirige, isso não é um problema. Pode dirigir por um ano ou por dois, por 10. A questão é o coletivo. O código do trabalho tem vindo a piorar. Há nas leis laborais e na lei da greve muitas violações. Estamos a caminhar num sentido muito complicado.
E há novas formas de sindicalismo e mais radicais.
Mas isso não quer dizer eficiência ou eficácia.
Não a preocupa estes novos movimentos inorgânicos como o que convocou a greve cirúrgica na saúde ou o Movimento Zero nas polícias? Não ameaçam os sindicatos tradicionais?
Não é os sindicatos que ameaçam. Ameaçam a solução dos problemas dos trabalhadores. É preciso ver quantos trabalhadores ficaram prejudicados com a greve cirúrgica dos enfermeiros. Não ajudou nada. Na prática, o que veio trazer mais aos enfermeiros que não fosse as reivindicações de sempre do SEP?
Com o Movimento Zero é preciso ter cuidado. Neste momento, em que há um contágio de políticas de extrema-direita, temos que ver quem está a ser marioneta e quem movimenta os cordões. Os trabalhadores, só por si, não se apercebem disso.
Os sindicatos que já existem podem ser mal interpretados ao fazerem uma crítica, mas não se trata de uma questão de concorrência, até porque os sindicatos têm que se ir alterando de acordo com as realidades que aparecem.
Está desejosa de ir gozar a reforma ou vai-lhe custar?
Não me vai custar nada. Não vou ficar em casa parada. Tenho algum trabalho de Direito para fazer, vou continuar a minha militância política, vou estar ao lado de todas as manifestações da CGTP. As mulheres têm uma força e uma dinâmica muito grande e devem aproveitá-las até ao fim da sua vida. Tenho também histórias muito engraçadas que já me dão para viver o resto da vida!
Vai escrever umas memórias?
Não, mas tenho aí um ou dois livros que hei de publicar sobre histórias da minha vida sindical. Estou a guardá-las para esses livros, mas são histórias que demonstram que vale a pena lutar. Não há nenhuma palavra que se perca. Nada se perde. A palavra diz-se e fica. Eu acredito nisso. É nesta construção que eu senti que ajudei.
Nunca nestes 34 anos, pensou voltar para o centro de atendimento da Segurança Social do Areeiro?
Nunca estive no atendimento porque não me aceitaram. Na altura, veio uma ordem de serviço a dizer que não podíamos transmitir ao beneficiário as leis a que ele podia recorrer se as coisas fossem negativas. Por isso, muitas vezes saia do guichet e apanhava a pessoa na rua e dizia-lhe como é que ela devia fazer.
E ficou conhecida por ser às vezes dura nas palavras. Isso faz parte do papel de dirigente sindical? Carregar nas tintas ou a Ana Avoila é mesmo assim?
Olhe, nunca me apercebo disso. Depois dizem-me. Muita gente gosta, outra gente não gosta. Sou assim por natureza. Nas relações negociais, a minha relação humana não é má. Quando estou em frente à ministra Alexandra Leitão, não tenho nada contra a ministra, tenho é em termos políticos. Quando é para defender causas tenho que as defender como sei. Sei ser assim e não pretendo mudar. Para mim, não há politicamente incorreto. Só há o politicamente incorreto quando se ultrapassa aquilo que está na Constituição e nas leis. De resto, as pessoas podem dizer aquilo que quiserem que eu respondo da forma como quiser.
Tem noção de quantas vezes bateu com a porta numa negociação ao longo destes 34 anos?
Tenho, sei, sei! Já bati com a porta a três secretários de Estado, um dos Assuntos Fiscais, dois do Orçamento (um no tempo de José Sócrates) e uma agora. As outras vezes que bati não era coordenadora da Frente Comum.
Ao longo do tempo, ameaçaram-me muitas vezes dizendo “Ou você deixa de fazer ou a gente não fala consigo”. Ou chegar lá [à mesa de negociações] e ter uma proposta diferente daquela que me enviaram ou prepararem a discussão de uma forma e enviarem depois a proposta de outra. Sentarem-se à mesa de má-fé isso não dá. Não dá, não é para mim, é para os trabalhadores. Portanto, não se pode ficar. Um dirigente sindical que é enganado descaradamente deve ter vergonha se ficar lá sentado e dizer “Ai, não me devia ter feito isso”. É que não há condições. Perde-se a confiança, a autoridade e não se resolve nenhum problema. Não dá. Quem está no poder esquece-se que existem pessoas, vê a macroeconomia e não vê pessoas.
De que é que vai ter mais saudades?
Se calhar vou ter saudades dos trabalhadores, de andar nos locais de trabalho. Quando fazia muitos plenários, na altura das eleições, conseguia estar sempre mais avançada do que as sondagens porque ali sente-se tudo. Se for preciso, dou lá um salto, logo se vê (risos).