Associação João 13. “O acolhimento é a prioridade e a nossa mais valia”
12-11-2019 - 17:53
 • Ângela Roque

A poucos dias da Igreja assinalar o Dia Mundial dos Pobres, a Renascença dá a conhecer o trabalho da “Associação João 13”, que apoia dezenas de sem-abrigo e pessoas carenciadas da cidade de Lisboa, com jantar, banho e roupa lavada. Campanha de Natal vai ser para comprar próteses dentárias, “para os pôr a sorrir”.

Criada em 2015 a "Associação João 13", ligada aos dominicanos, gere atualmente o Núcleo de Apoio Local (NAL +) de São Vicente. Situado entre a Feira da Ladra e a estação de Santa Apolónia, funciona em instalações cedidas e equipadas pela câmara municipal. Com a ajuda de 230 voluntários serve jantares, de sábado a quinta-feira, mas os utentes também ali podem tomar banho quatro vezes por semana, entregar a roupa suja para ser lavada, e levar o pequeno almoço para o dia seguinte. Para já só não conseguem abrir à sexta-feira.

Frei Filipe Rodrigues, o presidente da Associação, fala-nos sobre este projeto que considera “inovador” no tipo de ajuda que oferece, e que em quatro anos já tirou da rua 10 sem-abrigo.

Que associação é esta e desde quando é que existe?

A "João 13" é uma associação de voluntários que nasceu em 2015 e foi sendo amadurecida, não para ser uma associação, mas um grupo de pessoas cristãs que se reuniam no Convento de São Domingos, em Lisboa, uma vez por mês, para aprofundar um bocadinho a espiritualidade Dominicana. Fizemos isso no primeiro e no segundo ano. Depois entrámos na Encíclica do Papa Francisco a 'Alegria do Evangelho', e as pessoas perceberam que isto não podia ser só discurso, ou só ir à missa, o Papa estava a mandar-nos ir para as periferias…

Ir para o terreno. Lê-se na vossa carta de princípios que esta é uma associação 'não confessional', mas tem esta inspiração cristã e esta ligação aos dominicanos.

O 'não confessional' significa que não é da Igreja, não é assumidamente católica, mas é inspirada em valores do Evangelho. É profundamente cristã na sua fundação, mas universal no acolhimento de voluntários. Podemos ter voluntários que não sejam católicos nem cristãos. Já tivemos pessoas judias e budistas que nos foram ajudar em situações de maior dificuldade. Portanto, o não ter confissão religiosa é por princípio, mas é profundamente inspirada no Evangelho de São João, capítulo 13. É daí que lhe vem o nome "João 13".

É o episódio do lava-pés, do serviço ao outro.

É esse mesmo, João 13,15: "assim como eu vos lavei os pés, vocês devem lavar os pés uns aos outros". É isto que nos motiva a sair do nosso conforto, da nossa vida e da nossa rotina para irmos lavar os pés - naquilo que de simbólico tem lavar os pés - às pessoas mais carenciadas.

A ajuda aos sem-abrigo esteve sempre nos vossos objetivos?

Sim. A nossa ideia era irmos onde ninguém vai.

E os sem-abrigo ainda são uma realidade muito presente na cidade de Lisboa. Foi por isso que sentiram essa necessidade?

Sim. E achamos nós – e por isso é que a nossa associação se torna um bocadinho diferente - que a resposta prática que se dá às pessoas sem-abrigo não é a melhor…

Quando se fala na ajuda aos sem-abrigo pensa-se logo na distribuição de comida na rua. A ‘Associação João 13’ faz um trabalho muito diferente?

Chama para casa.

Como é que funciona?

Funciona como funciona a nossa casa. Quando vou às escolas falar da "João 13" digo muito isto: imaginem que é como vocês fazem, chegam a casa ao final do dia, tomam banho, depois jantam. Ali é o mesmo: tomam banho, jantam e levam o pequeno almoço para o dia a seguir. Portanto, nós acolhemos - é a primeira grande beleza da ‘João 13’’, o acolhimento. Acolhemos as pessoas, que têm a possibilidade de tomar banho, lavamos a roupa suja que eles deixam e damos roupa lavada, nova. Cada pessoa tem os seus cabides com um número, como acontece nos conventos, nos seminários e nas casas religiosas, como somos muitos cada um tem um número. Eles têm um número mas não os chamamos pelo número. O António, a Maria, seja quem for, é tratado pelo nome. Depois de tomarem banho vão para o refeitório, onde há um grupo de voluntários que faz o jantar. Jantam, e depois à saída entregamos o saquinho com o pequeno-almoço, porque no dia a seguir não há carrinhas nem instituições abertas para lhes dar o pequeno almoço. Foi uma das necessidades que identificámos. Muitos queriam levar a sobremesa ou alguma coisa para o dia a seguir, e nós pensámos 'temos que lhe dar também um pequeno-almoço', que consiste num pacote de leite, um pão com queijo ou um bolo, se tivermos algum donativo, e uma peça de fruta, quando temos.

Onde é que funciona?

Em 2015 começámos a trabalhar no Espaço Laura Alves, na Freguesia de Santo António, mas acabou por não correr bem, porque as pessoas queixavam-se da má vizinhança das pessoas sem abrigo, e tivemos de fechar. Há sempre esse estigma. Mas, a câmara de Lisboa, conhecendo o nosso trabalho, disse 'isto não pode morrer', e o presidente da CML, pessoalmente, tratou de nos arranjar este espaço na Junta de Freguesia de São Vicente. Fica num primeiro andar da Calçada do Cascão, próximo da Feira da Ladra e da estação de Santa Apolónia.

A ajuda que prestam é diária?

Diária, no ideal, mas as sextas-feiras ainda continuam fechadas por falta de voluntários. Abrimos os banhos na quarta-feira, que era um dia que não tinha, em janeiro vamos abrir os banhos à segunda-feira, que é o único dia que neste momento não tem banhos, e depois queremos abrir a sexta-feira, assegurando a totalidade dos dias da semana.

Servem em média quantas refeições por dia?

56, 57 refeições, é variável. Se há um dia em que há um jogo do Benfica, do Sporting ou do Porto…

Isso tem influência?

Tem. Ou vêm muito agitados, porque querem jantar mais cedo para ir ver o futebol, ou vêm mais tarde, porque acabou. Se for durante o jogo, dos 50 e tal podemos ter 40 a jantar.

Quantos elementos têm as equipa de voluntários?

Entre 12 a 15 pessoas por dia, para estarmos todos tranquilos.

Porque há muitas tarefas para assegurar?

Há quem cozinhe, há quem sirva à mesa, há quem trate da roupa, do balneário, quem faça o controlo de entradas também, quem trate da roupa suja, e depois no final limpar todo o espaço. Não temos empregada de limpeza, somos nós que fazemos tudo gratuitamente e cuidamos daquela casa que é deles e também é nossa.

São quantos voluntários para os vários dias da semana?

São 230 voluntários, mas não vão todos semanalmente. Temos voluntários indiretos, que são os que ao fim do dia não podem estar diretamente com as pessoas, mas trabalham durante o dia: preparam as coisas, fazem triagem de roupa, vão buscar donativos. Depois temos os voluntários diretos, que estão com as pessoas que acolhemos, os sem abrigo ou pessoas muito carenciadas. A regularidade depende de cada um, há pessoas que vão semanalmente, outras quinzenalmente, outras uma vez por mês. E ainda temos um grupo de pessoas que chamamos ‘voluntários SOS’, que chamamos quando são precisos.

Quem procura os vossos serviços são na maioria sem-abrigo?

E pessoas carenciadas, muitas vivem em quartos. Todas as pessoas que acolhemos são encaminhadas por instituições, seja o NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção para os Sem Abrigo), seja da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. No caso dos sem abrigo são encontrados na rua pelo NPISA, identificados e credenciados para serem acolhidos.

E ninguém aparece por acaso, por ter ouvido falar da instituição?

Se alguém aparece e diz ‘preciso de jantar, não como há três dias', obviamente que não seria cristão se dissessemos 'não pode entrar'. E já aconteceu, porque uns chamam outros, e aquele é um espaço agradável, de encontro, com comida quente, não se come nas mãos, come-se numa mesa. Faz diferença em relação ao que é o serviço às pessoas sem-abrigo.

As carrinhas de rua têm muito mérito, porque há pessoas que por teimosia, ou outra coisa, não saem da rua e estão sempre à espera, e é preciso alimentá-las. Mas as pessoas percebem que entre viver na rua e passar a ir ao NAL+ de S. Vicente, que é gerido pela ‘João 13’, é um passinho para poder sair da rua. Aqui pode-se dar o salto.

Também têm a preocupação de encaminhar depois para uma reabilitação social?

Sim.

E para uma integração no mercado de trabalho?

No mercado trabalho é mais difícil. Não costumamos maçar as pessoas, se somos muito invasivos podem deixar de aparecer. Por exemplo, uma pessoa com problemas de droga, se vamos logo no primeiro diz dizer "tens de deixar a droga"… tem de ser a pouco e pouco, quando as pessoas permitem que essa conversa seja feita da nossa parte, ou quando nos pedem ajuda, que é o ideal.

Ao longo destes anos tirámos cerca de 10 pessoas da rua, e foram elas que nos pediram isso. Alguns foram para comunidades terapêuticas, outras conseguimos, através da Santa Casa, que tivessem o subsídio de apoio, e já não são pessoas sem-abrigo, são pessoas carenciadas que vivem num limite de pobreza, mas têm aquele subsídio para pagar um quarto. Como nos quartos não podem pôr um fogão, não podem lavar roupas, se calhar não podem tomar banho todos os dias, continuamos a apoiar.

Sabemos que ali acolhemos não só pessoas sem-abrigo, mas também pessoas já de bastante idade, que vivem nestes quartos e que precisam obviamente do nosso apoio.

Uma das vertentes importantes do projeto passa pela atitude de acolhimento e de escuta. Os voluntários interagem com os utentes, fazem companhia?

Esse é o grande papel dos voluntários. Em Lisboa ninguém morre à fome por falta de comida. Há carrinhas, há sempre alguém que ajude. Não há notícias 'morreu à fome'. Pode ter morrido espancado, pode ter morrido num incêndio, queimado, mas ninguém morre à fome em Lisboa, hoje.

Mas, a solidão é um problema grave.

Esse é que é o problema, de que o Papa Francisco fala tantas vezes. Às vezes deitamos a moeda no cesto do pobre e não lhe dizemos 'bom dia', não dizemos 'como está?'. Quem faz este voluntariado, sobretudo semanal ou quinzenal, com maior regularidade, começa a saber o nome das pessoas, a saber se estão alegres ou tristes, se têm problemas. Começamos a entrar na vida deles e eles a entrar na nossa vida.

O relacionamento com estas pessoas nem sempre é fácil nem imediato.

Não com todos. Há pessoas que nos ocultam situações da sua vida. Se calhar também há pessoas que nos mentem, para receber mais alguma coisa ou para terem mais algum apoio, mas é preferível fazermos o bem mesmo estando a ser enganados, do que deixar de o fazer.

Para nós, ‘João 13’, que gerimos o NAL+ de S. Vicente, a grande prioridade é o acolhimento. Os voluntários podem sentar-se a jantar com os utentes, se alguém diz 'preciso de falar consigo', o voluntário tem toda a liberdade de se sentar e comer uma sopa, ou outra coisa, ou não comer nada, mas estar ali, com a pessoa. Esta é a nossa grande mais-valia. Não quero menosprezar as outras associações, estou a falar da que eu conheço. A ‘João 13’ tem esta missão de cuidar, mas sobretudo acolher, ouvir e estar disponível para dar uma resposta quando nos é pedido.

As instalações permitem que este trabalho seja quase profissional. Têm uma cozinha equipada, industrial, lavandaria, balneário, tudo equipado pela câmara?

Há 100, 150 anos, aquilo era uma fábrica de botões, depois foi escola, e ultimamente tinha sido um pólo da Junta de Freguesia, que não estava a servir, então a câmara municipal de Lisboa apoiou este projeto e equipou as instalações, preparou tudo para nós podermos entrar. Temos uma sala roupeiro, onde temos a roupa dos utentes, temos um hall onde acolhemos as pessoas, temos oito duches – cinco para homens e três para senhoras, temos um refeitório com capacidade para 40 pessoas, uma cozinha industrial e uma lavandaria, onde lavamos a roupa.

Recebem mais apoio da autarquia?

Temos um protocolo assinado anualmente, terminou no passado dia 8 novembro, já entregámos o relatório final, é sempre avaliado. Depois há um subsídio, este ano foi de 25000 € para ajudar nas despesas, mas não chega. Temos de comprar a comida – apesar de recebermos alguns donativos -, alguma roupa que não vem em doações. Por exemplo, as pessoas não dão roupa interior, não é...

As pessoas acham que a pessoa sem abrigo só precisa de comer. Não é verdade, também precisa de se vestir, e não pode ser qualquer roupa. Não é por ser esquisito, mas há pessoas que oferecem fatos e gravatas, isto para um pessoa sem abrigo não faz sentido. Sapatos clássicos, também não faz sentido, gostam mais de ténis, mas isso nem sempre aparece. Portanto, compramos roupa interior, produtos de higiene, pasta e escovas de dentes, têm desodorizante, gostam muito de pôr after shave, saem dali completamente novos, transfigurados quase! E também temos de comprar os produtos para limpar o espaço, desinfetantes, detergentes para a máquina de lavar roupa e máquina de lavar loiça. É a despesa de uma casa, só que é tudo em tamanho grande.

Recebem muitos donativos? E ajudas através de mecenato?

Donativos sim, mecenato pouco ainda. Agora no Natal vamos ter algumas campanhas de solidariedade, uma delas para próteses dentárias para as pessoas sem-abrigo. Já demos a duas pessoas, queremos ao longo deste ano dar a pelo menos outras dez ou 15 pessoas, para as pôr a sorrir. Há pessoas que não sorriem, porque têm os dentes podres. É uma questão de dignidade e uma questão de imagem.

Também dão ajuda ao nível de cuidados de saúde primários?

Muito primários. Não temos médicos voluntários, mas temos voluntários que são médicos e quando há um médico ou um enfermeiro resolvem coisas urgentes, como uma dor de dentes, uma dor de cabeça, um curativo. O que é mais complexo temos de encaminhar para o Hospital.

Se alguém vem do hospital com uma receita para aviar e não tem dinheiro - e isto acontece com alguma frequência - nós aviamos, obviamente, ajudamos a esse nível. Mas, nos cuidados de saúde é no básico, porque a Santa Casa tem resposta para as pessoas carenciadas e temos de promover os apoios locais que fazem.

A Igreja assinala no próximo domingo o III Dia Mundial dos Pobres, por iniciativa do Papa Francisco. Ainda são precisas efemérides para lembrar às pessoas que a pobreza existe e que é preciso ser combatida?

Este dia mundial dos pobres não é um dia de orgulho, como são outros dias. É um compromisso pessoal do Papa Francisco, uma chamada de atenção à Igreja de que tem de estar do lado dos pobres, das periferias existenciais, e é um mostrar a todo mundo que o pobre é amado por Deus. Como? Através do serviço que nós prestamos aos mais pobres.

A Carta deste ano do Papa para este dia tem uma parte muito bonita que fala do valor dos voluntários, que discreta e humildemente ajudam os mais pobres. Isto não é para se exibir, é para se fazer, obviamente para se dar a conhecer também, mas é lembrar muito aquilo que Jesus diz no Evangelho: 'quando vocês fizerem alguma coisa no final digam 'somos servos inúteis’. O voluntário não está a fazer nada de extraordinário, está a dar-se e a agradecer a Deus, através do voluntariado, aquilo que tanto recebe dele.

Tendo em conta que precisam sempre de mais ajuda, quem quiser colaborar com o projeto como é que pode fazê-lo?

Temos um site joao13.pt, que foi criado há pouco tempo, e que tem todas as informações sobre nós, como ajudar, em várias modalidades, uma delas é inscrevendo-se como voluntário, outra modalidade é fazendo um donativo em dinheiro, com a indicação bancária para o fazer. Portanto o melhor meio é esse. Nunca dizemos 'estamos cheios', porque os que não estiverem a trabalhar poderão estar a ouvir e a falar com as pessoas sem abrigo.