Será que os jornalistas já fizeram o seu trabalho de investigação e análise do documento-bomba do arcebispo Viganò, como o Papa Francisco lhes pediu, no voo de regresso da viagem à Irlanda?
Em parte, pode dizer-se que sim. Evidenciaram as contradições, perplexidades e silêncios do texto; esclareceram quem é o personagem que se prestou a este papel; e tornaram evidente que há dúvidas e respostas que só a Cúria Romana pode (e deve) dar, sejam quais forem as consequências.
Enquanto se aguardam desenvolvimentos, que quase diria são inevitáveis, é interessante verificar como alguns media, incluindo os de referência, continuam com a narrativa que mais lhes convém – as lutas intestinas, a “guerra civil”, a crítica ao “silêncio” de Francisco e da Cúria … - escondendo a multiplicação das manifestações de apoio ao Papa (algumas surpreendentes) e alimentando a ideia de uma força que os contestatários não têm, pelo menos fora dos Estados Unidos a América.
Se Francisco tivesse tido a infelicidade de se deixar enredar na armadilha que Viganò lhe estendeu, tinha-se eclipsado por completo a sua mensagem ao povo de Deus, difundida em 20 de agosto. A centralidade que deve ser dada às crianças vítimas de “abuso sexual, de poder e de consciência” e o cuidado que é devido às vítimas de tais abusos diluir-se-ia na guerrilha de interpretações. Por outro lado reforçar-se-ia a ‘cultura de auto-referencialidade’ que levou (e pode continuar a levar) a tais condutas e ao seu encobrimento a todos os níveis da hierarquia.
Em Portugal, apesar das manifestações de apoio ao Papa, não estamos bem, ao contrário do que se quer fazer crer. Contentamo-nos com um normativo de horizontes limitados para lidar com situações de abuso do clero, elaborado pela Conferência Episcopal em 2012, e vivemos satisfeitos pelo facto de não haver nenhum caso em apreciação. A cultura do clericalismo, do poder e do respeitinho continua, em geral, vicejante. Mas também é verdade: o clericalismo está longe de ser um exclusivo do clero, o que não facilita as coisas.
Faz falta que grupos, comunidades e movimentos se sentem a reflectir sobre o que está a ser feito e o que falta fazer. Em sintonia com o que vem sendo desenhado por este papado. De resto, a solidariedade com o Papa só faz sentido se for acompanhada de iniciativas consequentes. Como diz a canção, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.