Trump, um presidente em campanha permanente que mina a influência dos EUA
08-11-2017 - 09:39
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Há um ano, era eleito Presidente dos Estados Unidos. Governa o país como quem faz campanha eleitoral permanente e a popularidade não pára de cair. Hoje, algumas eleições secundárias deram os primeiros sinais negativos aos republicanos.

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Há três semanas, o “Economist” fazia capa com o Presidente chinês, Xi Jinping, e chamava-lhe “o homem mais poderoso do mundo”. Isto nas vésperas da abertura do congresso do Partido Comunista Chinês que consagrou Xi como o líder mais poderoso do país depois de Mao.

É pouco provável que Donald Trump tenha visto o Economist, mas é provável que o apelidasse de “fake news” (notícias falsas), o epíteto favorito que reserva para tudo que lhe desagrada nos media.

Ao classificar Xi como o homem mais poderoso do mundo, a prestigiada e influente publicação britânica fazia uma ressalva. A China não é a potência mais poderosa do mundo, mantém-se numa posição subalterna face aos Estados Unidos, quer em termos de hard power quer de soft power, mas o seu líder tornou-se o homem mais poderoso porque o presidente americano não está à altura de liderar a primeira potência do planeta.

Donald Trump foi eleito há exactamente um ano, para surpresa de todos, incluindo dele próprio. Grande parte do mundo dormia quando os resultados das urnas começaram a desenhar a sua vitória. Quando acordaram, umas horas depois, milhões de asiáticos, africanos e europeus ficaram incrédulos com o que viam. Num universo de 120 milhões de votos, Trump teve menos 3 milhões do que a sua adversária, mas arrecadou 80 mil votos mais do que ela em três estados decisivos — Wisconsin, Michigan e Pensilvânia — o que lhe deu a vitória no Colégio Eleitoral.

Um ano depois, a incredulidade deu lugar à perplexidade perante declarações, discursos, atitudes, reacções e decisões (ou ausência delas) do novo presidente americano. Nunca se tinha visto nada assim e a única certeza que resta hoje é que Trump continuará a ser igual a si próprio até ao fim. Governa como fez campanha, com agressividade, insultos, desprezo pela lei, pela divisão de poderes e por tudo que é diferente.

Exactamente um ano depois de ser eleito, Trump chega hoje à China para retribuir a visita de Xi Jinping aos EUA em Abril. Uma coincidência irónica, já que na campanha um dos seus tópicos favoritos foi acusar a China de desvalorizar artificialmente a sua moeda para aumentar as exportações, de piratear tecnologia aos EUA, de inventar a tese do aquecimento global para prejudicar a economia americana e de fazer concorrência desleal em geral.

As ameaças foram várias. Desde denunciar, no primeiro dia como presidente, a China como manipuladora da moeda, apresentar queixa na Organização Mundial de Comércio, taxar drasticamente as importações — enfim, uma guerra comercial aberta que traria provavelmente maiores danos à economia americana do que à chinesa. Além do mais, Pequim é detentor de biliões em títulos de dívida americana.

Imprevisível e pouco racional

Mas não é só por isto que Xi surge hoje como o homem mais poderoso do mundo. Os decisores vêem em Pequim um centro de poder muito mais racional e previsível do que Washington, onde o nacionalismo e proteccionismo de Trump estão a retirar protagonismo aos EUA na arena internacional.

Em Janeiro, o mês em que Trump tomou posse anunciando a sua “America first” (America primeiro), Xi foi a Davos tranquilizar os líderes mundiais sobre o compromisso da China com o comércio livre, com o acordo do clima de Paris e com o processo de globalização em geral.

Depois disso, Trump retirou os EUA do TPP, o acordo de comércio com o Pacífico, deixando caminho aberto à China para dominar comercial e economicamente toda a região em que se insere. Ameaçou rasgar o NAFTA, o acordo de comércio com o Canadá e o México, neste momento em renegociação. Retirou os EUA do acordo do clima de Paris, deixando a Pequim o papel de membro bem comportado no clube dos grandes poluidores. E ameaça sair do acordo nuclear com o Irão, de que a China é subscritora e defensora.

A ignorância de Trump sobre as questões internacionais têm-no levado a afirmações e decisões erráticas que só acentuam o contraste com Xi Jinping. A Coreia do Norte é o melhor exemplo. Trump acentuou a retórica anti-Coreia do Norte como forma de pressionar Pequim para resolver o problema nuclear com Pyongyang. Disse recorrentemente que a China é que tinha os meios e a obrigação de meter os norte-coreanos na ordem. Mas quando recebeu Xi na Florida, reconheceu que o problema não era tão fácil de solucionar quanto ele pensava. Xi ter-lhe-á explicado a situação em toda a sua complexidade e por momentos ter-se-á feito luz na sua cabeça.

Esta semana, durante a deslocação à Ásia, parece estar a suceder o mesmo. Depois do discurso inflamado feito na ONU, em Setembro, depois de ter desautorizado publicamente o seu secretário de Estado ao “twitar” que não valia a pena perder tempo a negociar com Pyongyang, Trump reconheceu ontem em Seul que tem havido muitos progressos, que vê movimentações positivas e que a Coreia do Norte talvez acabe por fazer o que deve ser feito.

A inconsistência destas posições, associada à retirada dos EUA de vários palcos internacionais e à relutância em investir em áreas do globo que aspiram ao envolvimento americano — como África, por exemplo — deixam ao presidente chinês um protagonismo e uma oportunidade que ele certamente não descurará. A sua influência na arena mundial cresce na razão directa da descrebilização do inquilino da Casa Branca.

Com o seu ego desmesurado e narcisista, Trump credita-se seguramente como o homem mais poderoso do mundo. E esse é um estatuto que, em geral, se atribui por inerência ao presidente dos EUA. Mas a eleição de Trump há exactamente um ano veio provar que nem sempre o hábito faz o monge, sobretudo se o monge ignora a doutrina e milita contra a “teologia” da função.

E é isso que tem sucedido desde que tomou posse em Janeiro. A efervescência permanente em que vive e a obsessão em ripostar a qualquer crítica incendiaram ânimos por todo o lado e tornaram o cumprimento da agenda uma tarefa quase impossível.

Promessas por concretizar

Das três promessas-chave da campanha, não há nenhuma concretizada. Revogar e substituir o sistema de saúde (Obamacare) sucumbiu mais do que uma vez às divisões entre os republicanos no Congresso, voltando tudo à estaca zero. Trump aprovou recentemente uma ordem executiva para tentar passar por cima do Congresso, mas os seus efeitos são reduzidos e estão longe de desmantelar o sistema criado por Obama.

A reforma da imigração e o célebre muro na fronteira com o México estão também num limbo. Algumas tentativas legislativas para travar a imigração proveniente de alguns países muçulmanos esbarraram na decisão dos tribunais por discriminarem na base do credo religioso. Posteriormente, um tribunal superior aprovou uma versão mais cautelosa da ordem executiva de Trump, mas está tudo muito longe da definição de uma nova política de imigração.

A reforma fiscal é talvez a única que poderá avançar a curto/médio prazo. Na semana passada, os republicanos na Câmara de Representantes anunciaram um acordo nesta matéria com grande pompa. Aparentemente, as coisas estão bem encaminhadas e o presidente exultou com a proeza dos congressistas. Mas desde então já se ouviram aspirações a acrescentar pontos aquilo que foi acordado. Isto para além do escrutínio do conteúdo do acordo que lentamente tem revelado favorecimentos a sectores sociais mais abastados.

Além destas três promessas-chave, ainda no limbo, o dia-a-dia da administração Trump tem sido marcado pelo caos. Até agora nada menos do que dez membros foram substituídos ou abandonaram funções na sequência de escândalos. E o presidente, no seu estilo nada presidencial, tem-se envolvido em inúmeras polémicas que foram desde equiparar manifestantes anti-racistas a activistas nazis como fez aquando dos confrontos em Charlottesville, até atacar jogadores de futebol por se ajoelharem em atitude de protesto quando toca o hino nacional.

Russia connection

A maior polémica foi, contudo, desencadeada pelo despedimento do director do FBI, James Comey, que Trump demitiu de surpresa. A sua saída levou à nomeação de um investigador especial para o caso das ligações da campanha à Rússia, cujo trabalho começa a dar frutos. Esta é, sem dúvida, a questão mais delicada que a administração enfrenta.

Com a interferência da Rússia na campanha eleitoral dada como provada, os investigadores averiguam agora se houve conluio com os russos. Os indícios são abundantes e neste momento há três ex-colaboradores detidos ou sob custódia policial.

Um ex-director da campanha de Trump e o seu sócio, Paul Manafort e Rick Gates, respectivamente, estão em prisão domiciliária e sem passaporte e o julgamento já foi marcado para Maio próximo. Isto enquanto um outro colaborador, George Papadopoulos, está a cooperar com as autoridades e já confessou que teve vários contactos com os russos durante a campanha e deles deu conhecimento a altos responsáveis, nomeadamente a Jeff Sessions, um dos principais dirigentes e hoje ministro da Justiça.

Se há algo que incomoda verdadeiramente o presidente e preocupa a administração é esta investigação liderada por Robert Mueller, um ex-director do FBI com reputação de ser um acusador implacável. Os dados que têm vindo a público evidenciam inúmeras contradições entre aqueles que tiveram responsabilidades na campanha e revelam uma teia de contactos e cumplicidades com Moscovo que parecem configurar um conluio com uma potência estrangeira rival. Algo que a lei define como um crime federal e pune severamente.

A concretizarem-se estas suspeitas, este é o caso que pode interromper o mandato de Trump. O único donde sopra um cheirinho a Watergate e que pode culminar num processo de impeachment.

O simples facto de se abrir tal hipótese somente um ano após a eleição é revelador da magnitude dos problemas que a administração enfrenta. Não há espuma dos dias que possa ofuscar esta Russia connection.

Talvez por isso, Trump tem descido nas sondagens como nenhum outro presidente ao fim de dez meses de mandato, rondando agora os 35%. E os sinais de descontentamento começam a fazer-se sentir eleitoralmente. Nesta terça-feira, houve eleições para alguns governadores e presidentes de câmara, entre outras, e de um modo geral os candidatos republicanos foram batidos. Nos estados da Virgínia e de New Jersey, os candidatos democratas registaram vitórias confortáveis, o que os faz acreditar que daqui por um ano poderão bater os rivais republicanos nas intercalares para o Congresso.