“Viver em Karabakh é como viver num vulcão que pode entrar em erupção a qualquer momento. Temos de estar sempre preparados”. É assim que Irina Safaryan responde quando lhe perguntamos se foi apanhada de surpresa pelo ataque do Azerbaijão, no dia 27 de setembro, que culminou com a ocupação de grande parte do território que, até então, estava sob controlo de forças arménias, que se referem à região como Artsakh.
Irina nasceu em Hadrut. Os seus pais e avós também eram de lá, mas agora a família toda teve de abandonar a vila, que passou para controlo do exército azeri. Toda a população arménia partiu e tudo indica que não voltará tão cedo, se é que alguma vez o faça.
“Eu já me encontrava na capital de Artsakh, Stepanakert, mas toda a minha família estava em Hadrut e teve de fugir. Saíram um ou dois dias antes de os azeris entrarem na cidade. Estão todos desesperados, sobretudo os meus avós, que só queriam viver e morrer na sua terra natal, em paz”, diz Irina.
Mas paz é algo que esta terra não conhece há décadas. Nagorno-Karabakh é um território disputado entre o Azerbaijão e a Arménia há mais de um século. Na prática, é um enclave de maioria arménia em território azeri. A absorção dos dois países pela União Soviética colocou água na fervura, mas Estaline oficializou a integração de Karabakh na República do Azerbaijão.
Durante anos os arménios queixaram-se de discriminação. Dizem que durante a guerra do Afeganistão, por exemplo, o Azerbaijão enviava os militares arménios para os contingentes que iam para a frente de guerra, mantendo os azeris na retaguarda. No final da década de 80 os arménios recorreram às leis da URSS para fazer um plebiscito e separar-se do Azerbaijão, mas Moscovo não permitiu. Nos anos 90, com a dissolução do regime, fizeram pelas armas o que não os tinham deixado fazer nas urnas, segundo dizem, e consolidaram o controlo de Karabakh, aproveitando a experiência militar que o Afeganistão lhes tinha dado para derrotar convincentemente o exército azeri.
Seguiu-se uma fuga em massa, com toda a população azeri a abandonar a zona para não viver sob domínio arménio. Foi nesta altura que nasceu Irina, num Hadrut que até então era habitado por comunidades de ambas as etnias. Mas a vida na União Soviética não era o paraíso intercultural que o regime tentava vender, garante.
“Nasci durante a primeira guerra, num bunker em Hadrut. A minha mãe deu-me à luz sozinha, porque o meu pai estava a combater”, diz Irina.
“Azeris e arménios viviam em todo o território de Karabakh antes da guerra. Era a União Soviética, e as pessoas viviam em conjunto. Supostamente era amigável e pacífico, mas a realidade não era assim. O conflito entre azeris e arménios existe desde 1918, quando a República do Azerbaijão foi artificialmente criada. Eu lembro-me das histórias que os meus familiares me contaram. Claro que há pessoas boas e más em todas as nações, mas o problema é que os azeris queriam assimilar os arménios de Karabakh e foi por isso começámos o nosso movimento em 1988 e depois começou a primeira guerra. É por isso que não aceitamos o modelo de ‘coexistência pacífica’ sugerida pelo Azerbaijão.”
“Dizem que basta pedirmos documentação azeri e que podemos viver em paz nas nossas terras. Mas eu não acredito. Vejam-se os crimes cometidos durante esta guerra. É impossível viver assim, porque eles vivem há 40 anos num ambiente de ‘armenofobia’ e de ódio. Não podemos simplesmente ficar aqui a viver e acreditar que nos vão aceitar”, diz ainda.
“Esperávamos uma guerra, mas isto foi terrorismo”
Crescendo em Karabakh a guerra e o conflito nunca estavam longe da imaginação de Irina. Periodicamente, havia escaramuças na frente, o conflito poderia parecer congelado, mas não estava.
“Estávamos à espera que acontecesse alguma coisa, porque quando se nasce numa zona de conflito temos de estar sempre a postos. Toda a gente compreende isso. Mas não poderíamos esperar este tipo de guerra, porque não se tratou de uma guerra, mais parecia um ataque terrorista, um ataque indiscriminado, contra civis. Logo no primeiro dia, para nosso espanto, os azeris começaram a bombardear cidades e aldeias, até a capital. Foi aí que percebemos que isto não poderia acabar bem.”
A utilização de termos como “terrorismo” pode parecer um exagero, mas os arménios apontam para a participação comprovada de milícias jihadistas sírias no conflito, cuja chegada ao território só pode ter sido facilitado pela Turquia, o ancestral aliado do Azerbaijão, cujo envolvimento possibilitou esta vitória militar, mas despertou as piores memórias entre os arménios, que sofreram um genocídio às mãos do Império Otomano em 1915.
“Foi no segundo ou terceiro dia que comecei a perceber que isto não era só um conflito entre a Arménia e o Azerbaijão, era diferente, porque a Turquia estava envolvida e trouxe mercenários sírios e paquistaneses da Síria. E aqui estava o pequeno Artsakh, sem gás nem petróleo, em guerra com o segundo exército mais poderoso da NATO. Era impossível vencer”, lamenta a jovem mulher que perdeu familiares e amigos no conflito.
Agora longe da sua terra, Irina sabe que dificilmente haverá paz nas próximas décadas. “Tenho pensado muito nisso, desde setembro, porque eu não quero que os meus filhos e netos tenham de ver e passar por tudo isto. Mas por outro lado, sei que esta é a única forma de permanecer e de viver na nossa terra, de proteger a nossa cultura, a nossa rica história, de proteger as igrejas e o nosso património cultural que deixámos para trás ou que se situam no minúsculo pedaço de Artsakh em que teremos de viver agora.”
Num sinal de profunda divisão, Irina não espera pelo dia em que os povos possam ser amigos. “Talvez este problema só se resolva quando o Azerbaijão e a Turquia enfraquecerem. Acredito que isso aconteça um dia, mas talvez aí eu já não esteja viva”.
“Para nós é a continuação do genocídio de 1915”
Para o ex-deputado e especialista no assunto Tevan Poghosyan, presidente do Centro Internacional para o Desenvolvimento Humano, em Erevan, não há dúvidas sobre o que motivou o apoio da Turquia ao Azerbaijão.
“Para nós o envolvimento da Turquia foi sempre notório, sentia-se nas suas declarações. Eles sempre disseram que a Turquia e o Azerbaijão são uma nação com dois estados e para nós que sofremos o genocídio em 1915 essas palavras pesam. Em 1915 mataram os arménios da parte ocidental e em 2020 trataram na parte oriental. Por isso é que não se preocuparam com os alvos, nem quiseram saber quantos civis morriam ou perdiam as suas casas. Isso não os preocupa. Usam mercenários, transportam-nos, cedem a sua força aérea e forças especiais aos azeris. Para nós é uma recordação dos muitos casos semelhantes que aprendemos nos livros de história e do seu comportamento naquela altura. É o mesmo genocídio”, diz.
Mas por mais que Poghosyan condene o comportamento da Turquia e do Azerbaijão, grande parte das suas críticas são voltadas para dentro, para o Governo de Erevan.
“A comunidade de especialistas já tinha feito muitos avisos de que o papel da Turquia era diferente agora e que o Azerbaijão estava a preparar uma ação militar. Penso que eles acharam que agora seria uma boa altura para agir, porque a comunidade internacional estava ocupada com a Covid e os Estados Unidos com as eleições.”
“Em junho houve uma primeira tentativa de ataque ao território arménio, mas foi rechaçada. Depois, entre 1 e 10 de agosto a Turquia anunciou exercícios conjuntos com o Azerbaijão e levou caças F16 para lá. No dia 10 disseram que os exercícios iam ser prolongados e estes continuaram até ao final da guerra”, acrescenta.
“Os especialistas avisaram muitas vezes, mas infelizmente a liderança arménia limitou-se à retórica, sem prestar atenção, e no dia 26 de setembro disseram que também iam fazer exercícios militares, mas foi tarde de mais, porque atacaram no dia 27”.
Poghosyan enumera ainda um conjunto de erros estratégicos por parte da defesa arménia, tais como a compra de equipamento militar que não chegou a ser usado, incluindo o cancelamento da compra de um sistema antiaéreo que podia ter anulado uma das grandes vantagens do apoio turco ao Azerbaijão e no lugar do qual foram comprados quatro aviões que nunca deixaram o solo durante a guerra, porque não tinham munições. O especialista critica ainda o facto de não se ter feito o suficiente para usar a diáspora arménia como trunfo diplomático, recordando que há 10 milhões de arménios a viver em várias partes do mundo.
Pior, considera, foi o facto de Erevan não ter permitido a entrada mais rápida de forças russas no território para pôr fim ao conflito. “Poucos dias depois do início da guerra já tínhamos sabido que tinha havido algumas ofertas da Rússia para travar o conflito, mas o Governo optou por lutar até ao fim. Mas então porque é que não lutaram até ao fim? Porque parámos agora, com esta situação deplorável”, diz, referindo-se ao acordo de cessar-fogo que Baku apelidou de capitulação arménia.
Nisso, Pogohosyan está de acordo com os inimigos da Arménia, com a diferença de que ele não acredita que Ancara e Baku estejam satisfeitos com o status quo imposto pela intervenção russa, que congelou o conflito numa altura em que os arménios ainda controlavam algumas bolsas de Karabakh.
“Não acho que a Turquia e o Azerbaijão considerem que o trabalho está acabado. Os turcos têm ideias muito diferentes. Mesmo que não tentem mudar a situação agora, fá-lo-ão dentro de alguns meses ou mesmo anos, tentarão ocupar toda a Arménia”, afirma.
Apesar de tudo, acredita que ainda poderá haver um futuro para os arménios em Karabakh. “Se formos espertos, se formos unidos, se não nos dividirmos internamente, mas usarmos o potencial de 10 milhões de arménios no mundo para realizar este sonho, então sim, há um futuro para os arménios em Karabakh.”
“Tivemos uma oportunidade em 1988 e usámo-la. Quem nos diz que não haverá outras oportunidades no futuro? Se conseguirmos recuperar desta capitulação catastrófica, então há uma possibilidade”, acredita.
“O petróleo sempre valeu mais que o sangue”
Uma das coisas que mais marcou os arménios neste conflito foi o seu quase total isolamento. A Arménia foi o primeiro país a adotar o cristianismo como religião oficial, no Século IV, e a religião é um aspeto muito importante da identidade nacional, numa região onde o Islão predomina.
Contudo, até a vizinha Geórgia, que também é cristã, virou as costas aos arménios neste conflito. Tevan Poghosyan insiste que este nunca foi um conflito religioso, mas sim étnico, mas não poupa críticas aos apoios ao Azerbaijão que acredita terem sido comprados com petróleo e gás.
No caso da Geórgia e da Ucrânia, o apoio ao Azerbaijão foi ainda uma consequência direta do apoio da Rússia à Arménia. “Os georgianos perderam a Ossétia do Sul e a Abecásia por causa da Rússia e por isso consideram que se a Rússia nos apoia, isso torna-nos seus inimigos. Com a Ucrânia acontece o mesmo. A lógica é que Donbass foi tomada pelos russos e como Karabakh é apoiado pela Rússia, estão com o Azerbaijão. Mas o problema de Karabakh não foi criado pela Rússia, foi criada por Estaline, e o problema em Donbass não foi criado por Karabakh.”
“Infelizmente o petróleo está a desempenhar aqui um papel fundamental. Israel, Geórgia e Ucrânia sempre disseram que nos seus dias de dificuldade o Azerbaijão ajudou-os com petróleo e energia, por isso sentem que estão em dívida para com eles. Infelizmente, nós não temos petróleo para ajudar ninguém. O petróleo sempre valeu mais do que o sangue”, lamenta.
Mas as críticas de Poghosyan não se ficam pelos vizinhos regionais. “Alguns agiram segundo os seus interesses, mas o comportamento dos britânicos e dos alemães foi terrível. Sempre olhámos para eles como verdadeiras democracias, mas vendo a sua passividade diante de tantas matanças e violações dos direitos humanos… Pior, apoiaram-nos. Temos de perceber uma coisa. Há muitos países que têm medo de irritar a Turquia, porque têm grandes comunidades turcas e quem sabe o que poderá acontecer.”
“Ao longo destes dois meses compreendi muitas coisas, incluindo que todas as palavras sobre democracia no ocidente não passam disso mesmo, palavras”, diz, e deixa um aviso, “o mundo está sempre em mudança e quem sabe quando serão os nossos vizinhos a precisar da nossa ajuda? Mas nós não nos vamos esquecer do que nos fizeram e agiremos em consonância.”
O acordo de cessar-fogo deixou os arménios em controlo de pequenas faixas de território em Karabakh, que serão protegidas por um destacamento russo de manutenção da paz. A Turquia também queria enviar soldados para a região, mas Moscovo não permitiu. A recuperação da grande maioria de Karabakh por parte do Azerbaijão foi uma enorme conquista política para o regime e vai permitir o regresso às suas terras de mais de um milhão de azeris.
Já a inimizade entre os dois povos corre o risco de permanecer e de ter sido ainda mais agravado com este conflito, que certamente ainda dará muito que falar nos anos que se seguem.