Pastoral dos Ciganos. "Não podemos olhar os ciganos como caçadores de subsídios”​
07-04-2024 - 09:30
 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

O diretor nacional da Pastoral dos Ciganos, organismo da Igreja Católica que visa promover o desenvolvimento espiritual, humano e social desta população e a sua inclusão na sociedade portuguesa, diz que a comunidade quer "ser parte da solução". Em vésperas do Dia Internacional do Cigano, Hélder Afonso revela que vai solicitar uma reunião ao novo Governo e aos partidos parlamentares, disponibilizando-se para ajudar na definição de uma estratégia, uma vez que "não se pode arranjar uma estratégia para a comunidade cigana sem perceber a sua cultura".

O diretor nacional da Pastoral dos Ciganos, Hélder Afonso, defende a necessidade de “desmistificar" a ideia de que “os culpados de tudo são os ciganos”.

"Não podemos olhar para os ciganos só como caçadores de direitos, de subsídios”, diz Hélder Afonso, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia.

“É fácil ter esse discurso, o discurso de ódio, o discurso de que 'eles' são os parasitas da sociedade. Quando vemos alguns partidos políticos atirar que os culpados de tudo e mais alguma coisa são os ciganos... Não podemos conceber”, reforça.

O responsável dirige também uma mensagem à comunidade cigana, recordando que ela não pode olhar apenas para os seus direitos. “Vós também tendes que olhar para aquilo que são os vossos deveres”, proclama o diretor da Pastoral dos Ciganos.

Hélder Afonso revela que vai solicitar uma reunião ao novo Governo, tal como aos partidos com assento parlamentar, disponibilizando-se para ajudar na definição da estratégia para as comunidades ciganas.

"Não se pode arranjar uma estratégia para a comunidade cigana sem perceber a sua cultura", argumenta, completando: "Conhecemos a realidade, conhecemos as comunidades, conhecemos a cultura cigana e queremos também ser parte da solução."

O responsável nacional da Pastoral dos Ciganos revela também a intenção de visitar todas as comunidades de etnia cigana espalhadas pelas dioceses e, citando o Papa Francisco, apela a "uma sociedade inclusiva”.

"As instituições de solidariedade social acolhem todos e não fazem exceção de pessoas”, assim como as escolas, mas Hélder Afonso admite que essa abertura nem sempre se verifica: “Quando há uma comunidade cigana que quer ir para uma habitação social, se calhar, existirá alguma resistência por parte das instituições."

"Os cristãos não devem ter vergonha de serem amigos dos ciganos”, diz o diretor nacional, defendendo que também a Igreja "não deve ter receio de se envolver e de mostrar que está atenta".


Após a sua nomeação, em novembro de 2023, manifestou a intenção de visitar todas as comunidades de etnia cigana espalhadas pelas nossas dioceses. Já iniciou esse périplo?

Vai ser uma missão bastante difícil, não é impossível, mas é uma missão difícil porque cada realidade em cada diocese, em cada região é diferente. Já iniciei e visitei algumas comunidades na diocese de Bragança. Tive a oportunidade, agora em fevereiro, de estar com a pastoral dedicada aos ciganos da diocese de Bragança-Miranda. Tive a oportunidade de ver o trabalho deles, um trabalho muito válido. É um trabalho com características diferentes daquelas que vemos no Alentejo ou em Lisboa, é um trabalho de grande proximidade, juntamente com alguns elementos que já fazem daquela pastoral no seu dia-a-dia. Estou-me a lembrar de alguns professores que se dedicam integralmente ao ensino de jovens e de miúdos ciganos.

Falou da importância de criar em cada diocese um secretariado ou uma valência ligada esta pastoral...

Sim, esse secretariado, se calhar, em grande parte das dioceses até já existe. Está é inativo ou está sem um grande trabalho pastoral. Grande parte dos secretariados da Cáritas já faz esse trabalho de proximidade e nós, às vezes, fazemos uma junção, misturamos aquilo que é o trabalho com a etnia cigana com aquilo que são os apoios sociais. Por isso, grande parte das dioceses junta a pastoral social à pastoral das migrações, com a pastoral das minorias étnicas ou a pastoral dos ciganos.

Seria importante - e vai ser essa também a nossa missão - mostrar à hierarquia, mostrar aos senhores bispos o que de facto podemos fazer diferente. A Cáritas faz o trabalho dela, e bem, um trabalho muito válido, mas a Pastoral dos Ciganos também. A direção nacional não tem qualquer supervisão sobre as diocese, pois cada diocese tem a sua autonomia e assim é que deve ser, mas devemos trabalhar em colaboração, em proximidade: Só assim conseguimos fazer na Igreja um trabalho válido, um trabalho que vá ao encontro dos nossos irmãos ciganos.

Como é a sua experiência pessoal neste campo?

É uma experiência muito válida. Na freguesia onde vivo, em Vila Real, tenho uma comunidade de ciganos, tenho uma aldeia - Lagares - onde 80% das pessoas são ciganos. Estou nesta missão já há algum tempo, entrei com o padre Francisco Salles em 2013, embora de uma forma informal, para a direção nacional. Colaborava com eles e tive sempre uma ligação muito próxima com a comunidade cigana. Aliás, sou padrinho de três ciganos, fruto também da minha ligação e do meu envolvimento com eles. A comunidade cigana tem que sentir em nós alguma proximidade, algum afeto, algum carinho por aquilo que é a cultura deles. Não nos podemos imiscuir naquilo que é a cultura deles e temos de estar com eles naquilo que é bom, nos aniversários e nas festas deles, ou na doença, numa visita ao hospital ou até na morte.

Como se pode caracterizar a realidade da etnia cigana em Portugal?

Temos realidades diferentes. Nós estamos a falar de ciganos com baixa escolaridade e que, no interior, vivem essencialmente daquilo que é a agricultura ou da pastorícia. Lá por Vila Real, grande parte da comunidade tem animais, dedica-se à agricultura. Há também uma realidade de ciganos ligada ao comércio, essencialmente a calçado e vestuário. Por norma, dedicam-se exclusivamente a isso. E há um grupo de ciganos com outro poder económico, que estava enraizado na sociedade portuguesa e agotra podemos ver uma realidade a surgir, que é ada música da etnia cigana. Devemos também fazer esta ligação.

É uma forma de inclusão?

É uma forma de inclusão e uma forma de proximidade. Ouvimos falar dos ciganos sempre pela negativa. Estamos sempre a ouvir falar que são subsídio-dependentes, que são parasitas da sociedade, mas não.

Tem ideia de quantos são e onde vivem?

Por aquilo que eu pude perceber no Observatório das Comunidades Ciganas, estamos a falar de cerca de 60 mil a 70 mil. Até dezembro, esteve um concurso na Fundação Ciência e Tecnologia, para se fazer um estudo aprofundado sobre as comunidades ciganas em Portugal. Portanto, está numa fase de conclusão para que seja possível apurar quantos são, como é que vivem, a sua escolaridade. Aliás, uma das minhas primeiras reuniões foi com o Observatório das Comunidades Ciganas porque também queremos estar com eles neste trabalho de proximidade.

Deixou, há pouco, um sublinhado às palavras de Francisco, de que na igreja há espaço para todos. Esse desafio de encontrar soluções e estratégias com todos os agentes que trabalham nas instituições e de fazer esse esforço de estar próximos dos mais frágeis e excluídos da sociedade já está de alguma forma a ser cumprido?

Eu também quis usar aquela expressão do Papa Francisco - "todos, todos" - porque dizemos que queremos uma sociedade inclusiva, mas, depois, só a queremos para alguns. E quando se fala das comunidades ciganas, há sempre um torcer de cara face àquilo que são as suas vivências e àquilo que é a sua cultura.

As instituições acolhem todos, e eu estou a lembrar-me das instituições de solidariedade social, que não fazem exceção de pessoas. Estou a falar também da escola, estou a falar da parte da saúde. Se calhar, na habitação nem sempre isso acontece. Quando há uma comunidade cigana que quer ir para uma habitação social, provavelmente, existirá alguma resistência por parte das instituições, mas este trabalho tem que ser feito. Um trabalho de muita proximidade com eles. de perceber a cultura deles.

Não podemos arranjar estratégias para os ciganos sem perceber a cultura deles. E foi uma pena que a estratégia que terminou agora em 2023 não tenha sido renovada. Existia a estratégia da integração da comunidade cigana que terminou em 2020, mas que, devido à pandemia, foi prorrogada até 2023. Agora, essa estratégia terminou e não surgiu uma nova, tendo em conta aquilo que correu beme e a aquilo que correu menos bem.

Pode ser um desafio para o novo governo?

Sim, penso que sim. Aliás, uma das minhas propostas na direção é que, a breve prazo, possamos fazer junto do novo governo esta marcação. Queremos pedir uma reunião para também sermos parte integrante dessa estratégia, porque conhecemos a realidade, conhecemos as comunidades, conhecemos a cultura cigana e queremos também ser parte da solução. E queremos conseguir que a estratégia possa também ter frutos positivos. Às vezes, fazem-se grandes estratégias, fazem-se grandes tratados, mas, depois, na prática, eles não são executados. Ou, então, uma ínfima parte é que é executada e grande parte ninguém conhece. Se calhar, os ciganos não conhecem a estratégia.

Eu digo-lhes muitas vezes: "Vós não podeis só olhar para aquilo que são os vossos direitos, também tendes de olhar para aquilo que são os vossos deveres". Aqui está uma estratégia para que nós consigamos estar com eles.

Como é que a estrutura que dirige olha para a realidade portuguesa, onde algumas ideias racistas e xenófobas parecem ganhar adeptos?

É muito fácil ter essas atitudes contra uma comunidade, embora possa ser a maior comunidade das minorias étnicas, mas é uma minoria muito, muito pequena. Estamos a falar de 60 mil a 70 mil pessoas. É muito fácil aos partidos, é muito fácil à sociedade atirar a pedra. Há dias, estive no ISCTE a falar sobre a comunidade cigana em Lisboa. Aquilo que atiram sempre é que as “comunidades ciganas não gostam de trabalhar e vivem de subsidiodependência”.

Eu lembro-me sempre daquela passagem do Evangelho de São João que é "quem não tiver pecados, quem não tiver nada, que atire a primeira pedra". Ou seja, nós não podemos só olhar para os ciganos como caçadores de direitos, de subsídios. Não, estamos a falar de uma comunidade que tem os mesmos direitos que a restante sociedade. Eles não estão desprovidos dos seus direitos por serem ciganos.

Mas, do ponto de vista político, a avaliar pelos resultados eleitorais, pelo menos dos últimos, não há algo que está aqui a falhar? Certas ideias, do ponto de vista racista e xenófobo, ganharam muita projeção no Parlamento que se constituiu…

Sim, ganharam, porque é fácil ter esse discurso, o discurso de ódio, o discurso de que eles são os parasitas da sociedade, isso é fácil de dizer. Agora, difícil é ter estratégias e implementar estratégias que os façam, eu não diria que os façam mudar, mas que tenham outro tipo de mentalidade e outro tipo de abordagem ao assunto. Ou seja, nós, quando vemos alguns partidos políticos atirar que os culpados de tudo e mais alguma coisa são os ciganos, não podemos conceber isso.

Pretendo também, junto da nova Assembleia da República, tentar alguns encontros, algumas reuniões, para desmistificar esse conceito.

Com todos os partidos?

Com todos os partidos, é evidente. Não podemos fazer aqui exceção de partidos, nomeadamente daqueles que, se calhar, são um pouco mais contra a etnia cigana, contra as minorias.

Mas terá de haver alguma veemência da vossa parte?

Tem de haver, tem de haver disponibilidade e temos de levá-los a compreender aquilo que é a comunidade cigana e, se calhar, no âmbito da nova estratégia para as pessoas ciganas, é preciso perceber o que é que ali podemos colocar para que esse essa ideia, para que esse preconceito possa desaparecer ou possa diminuir na sociedade e em alguns partidos.

Do seu ponto de vista, pensa que é importante que a Igreja se empenhe a contrariar o sucesso destes pensamentos de caráter populista e racista…

Sim, claro, a Igreja também tem de ser um ponto de proximidade com os partidos. D. Manuel Linda falava no Domingo de Páscoa acerca dos cristãos na política. Claro, nós devemos também envolver-nos, enquanto cristãos, naquilo que é política, política ativa, junto dos partidos, junto da Assembleia, junto dos nossos governantes, para mostrar o nosso acordo ou o nosso desacordo com aquilo que são as políticas para as minorias étnicas e, nomeadamente, para os ciganos. Devemos ter uma palavra a dizer e a Igreja não deve ter receio de se envolver, de mostrar que está atenta, de mostrar que está atenta aos ciganos, de mostrar que está atenta às minorias étnicas, de mostrar que quer fazer acontecer algo nestas comunidades.

Já teve a oportunidade de conversar com o presidente da Agência para a Integração, Migrações e Asilo, o organismo que substituiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Qual a importância de manter estes canais de diálogo com as instituições públicas, tendo em conta até o conhecimento do terreno por parte das instituições católicas?

É muito importante nós, enquanto direção nacional da Pastoral dos Ciganos, podermos envolver-nos com as instituições que estão na frente de combate destas situações, nomeadamente a AIMA. Pedi uma reunião ao Dr. Luís Pinheiro, que é o presidente do Conselho Diretivo da AIMA, e que se mostrou logo disponível para reunir connosco, até porque com a junção do SEF e do Alto Comissariado para as Migrações, a AIMA ficou com todos os recursos humanos e também com toda a disponibilidade para trabalhar esta problemática, para trabalhar este desafio.

Reunimo-nos na sede da Conferência Episcopal, em Lisboa, onde ele se mostrou disponível para novos projetos, para apoiar novos projetos, para apoiar novas dinâmicas, para nos apoiar aquilo que é também o nosso interesse, enquanto Estratégia Nacional para os Ciganos, a questão da habitação, da educação, da saúde, e levar-nos a conhecer melhor também a realidade dos ciganos a nível do país, que é totalmente diferente no interior, no litoral, em Lisboa, em Vila Real, no Alentejo... E no Alentejo é uma comunidade bastante desprotegida.

Estamos a falar de uma comunidade que vive num prédio abandonado e tivemos a oportunidade de ver isso em agosto de 2023, de ver aquela realidade daquela comunidade que vive toda isolada naquele prédio, totalmente desprovido de condições dignas para um ser humano. Enquanto cristãos, não podemos fechar os olhos à realidade do povo cigano. Nós, cristãos, temos a obrigação de nos envolvermos, costumo dizer que "sujar as mãos", não é o termo mais correto...

Mas o Papa também o usa...

Sim, mas envolver-nos naquilo que é o trabalho com a etnia cigana... É difícil? Sim, não é um trabalho fácil, mas todos os trabalhos que envolvem pessoas, que envolvem indivíduos, muitas vezes desprotegidos, muitas vezes até colocados de parte, são difíceis. Esse trabalho deve ser feito por cristãos e não devemos ter medo de o fazer.

Em 2021, muito simbolicamente, o Papa, quando esteve na Eslováquia, encontrou-se com membros da comunidade cigana. Sabemos que representam a maior minoria étnica na Europa e, ao mesmo tempo, também a mais discriminada. O que é que está a falhar na União Europeia?

Nós nos últimos 3-4 anos, envolvemo-nos muito. A União Europeia envolveu-se muito na questão dos refugiados, e bem, mas esqueceu-se um pouco dos nossos ciganos, da maior minoria que é a comunidade cigana. E a Europa esqueceu-se - fruto também, se calhar, de alguns partidos europeus que põem de parte essa etnia - dos nossos ciganos, com uma história de mais de 500 anos… O Papa, em 2015, num encontro em Roma, onde eu estive presente, falou isso: que devemos ser cristãos próximos destas minorias, cristãos próximos dos nossos ciganos.

Ir ao encontro de todas as periferias…

De todas as periferias, para os trazer e, como disse há pouco, entender aquilo que é a sua cultura. Fazer uma Europa mais inclusiva, uma Europa mais capaz de o mostrar junto dos países-membros. Aliás, temo-lo visto com alguns projetos de integração a nível europeu, se calhar, muitas vezes não tão bem aproveitados. Vou estar no encontro anual do Comité Católico Internacional para os Ciganos (CCIT), [de 12 a 14 de abril] em Lyon, onde vamos também abordar as fronteiras...

"Atravessar fronteiras" é o tema, não é?

Os nossos ciganos no atravessamento de fronteiras e a ligação com todos os povos, em todos os países.

Perante o atual contexto, a montante, não será necessário derrubar determinadas fronteiras que se vão formando?

Eu diria atravessar corações. É importante que nós, enquanto cristãos, derrubemos essas fronteiras, derrubar aquilo que está dentro do nosso coração, relativamente a uma minoria étnica, derrubar algum preconceito, esse preconceito que está no nosso coração, derrubar essa falta de proximidade, derrubar também a vergonha. Nós, cristãos, não devemos ter vergonha de sermos amigos dos ciganos, porque há muito isso: quando se fala da comunidade cigana, fala-se baixinho, tem-se receio que os que estão ao nosso lado.

Mas para falar mal, fala-se alto…

Porque é mais fácil, é muito mais fácil falar mal e quando se fala dos ciganos é-se muito amplamente ouvido. Nós, enquanto cristãos, devemos ter essa proximidade, devemos derrubar o que nos impede de falar com os ciganos, derrubar aquilo que nos deixa indiferentes. Muitas vezes, somos indiferentes às problemáticas dos ciganos, que são diversas. Devemos ter essa capacidade de derrubar a fronteira, de derrubar problemas que estão intrinsecamente no nosso coração. Enquanto cristãos, não devemos ter medo de o fazer.