Há indícios de casos de tráfico humano entre refugiados ucranianos chegados a Portugal
23-03-2022 - 06:36
 • Ana Catarina André

A Alta-Comissária para as Migrações, Sónia Pereira, sublinha, em entrevista à Renascença, que "as possibilidades de integração plena dos refugiados vindos da Ucrânia são muito altas" e alerta para a importância de todas as ações de solidariedade serem articuladas com as entidades competentes.

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Com a chegada diária de refugiados ucranianos a Portugal, começam a surgir sinais de eventuais casos de tráfico de seres humanos. "Estamos muito atentos ao acompanhamento que fazemos, para podermos sinalizar imediatamente às autoridades competentes situações suspeitas", diz a Alta-Comissária para as Migrações, Sónia Pereira.

Em entrevista à Renascença, Sónia Pereira afirma ainda que "não há uma previsão do limite" de migrantes que Portugal possa acolher. "Ainda não temos razões para temer uma rutura", refere.

O Alto Comissariado para as Migrações (ACM) criou canais de comunicação específicos para apoiar os refugiados da Ucrânia. Quais são as principais situações que chegam neste momento à linha de apoio?

Continua a haver muita procura de informação sobre o procedimento para a regularização, sobre a forma de aceder ao mecanismo de proteção temporário. Temos prestado bastante apoio a pessoas que necessitam de submeter esse pedido na plataforma, para além dos pedidos que, desde o início, temos recebido relativamente a necessidades de alojamento, apoios sociais de vários tipos. As pessoas ocasionalmente também perguntam sobre questões relativas à educação ou ao emprego.

Quantas pessoas já recorreram a estas linhas de apoio?

Temos um serviço que funciona através da linha de atendimento ao migrante e um serviço de tradução telefónica. O nosso principal ponto de contacto para esta situação, porque a nossa linha continua a dar resposta a todos os migrantes, é o e-mail. Criámos um email para onde procuramos canalizar todas as questões que não implicam uma deslocação aos nossos serviços, o SOS Ucrânia [sosucrania@acm.gov.pt] Neste email, já recebemos mais de dois mil pedidos de contacto e tivemos até que fazer um reforço da equipa para conseguir dar resposta a um volume tão grande de emails.

As crianças estão em grande número entre os refugiados. Que mecanismos de integração estão a ser implementados, considerando a especificidade desta faixa etária e ainda mais a especificidade destas crianças que vêm de um cenário de guerra?

Está a ser pensado, desde o início, um mecanismo de proteção destas crianças. Implica uma atenção especial em todo o processo. No que diz respeito à submissão de pedidos de proteção temporária, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que é a entidade responsável pelo processamento destes pedidos, criou um procedimento para verificação da filiação, por exemplo, que implica que todas as famílias com crianças tenham que se deslocar obrigatoriamente a um atendimento presencial, para que se possa fazer esta verificação. Na área da educação foram criadas várias respostas, na sequência daquilo que já foi a abordagem muito flexível e de ajustamento às necessidades específicas destas crianças que chegam no âmbito de movimentos forçados. Em 2015, houve um pacote de medidas específicas e agora voltou-se a adotar medidas que permitem uma maior flexibilização, uma entrada rápida na escola. Sabemos que já há 300 crianças inscritas em escolas em todo o País, e uma enorme vontade de os municípios contribuírem para um processo bem-sucedido de inserção escolar.

Que apoio é dado aos menores não acompanhados?

Os menores não acompanhados estão sob a alçada direta do Instituto da Segurança Social. No âmbito daquilo que tem sido o nosso acompanhamento global à integração de pessoas refugiadas, não só nestes casos, mas também noutros casos de proteção internacional, existe uma partilha de informação, de conhecimento. Foi criada uma task force específica para crianças. Existe uma linha criada pelo Instituto de Segurança social para poder rececionar pedidos de informação ou sinalizações que possam dizer respeito a crianças em situações de risco. Estão criados todos os procedimentos e mecanismos para que menores não acompanhados possam ser encaminhados para o nosso sistema de promoção e proteção, que é aquele que se implementa no nosso País quando há menores que não têm um adulto responsável com elas.

Consegue precisar quantas crianças chegaram nesta situação?

É um número muito, muito residual. Daquilo que tem sido o nosso acompanhamento direto enquanto ACM, não temos identificadas crianças nessa situação. Mas desde que foi criado este mecanismo para reporte de situações começaram a ser identificadas algumas situações, mas são em número muito residual, até ao momento.

Uma das críticas que tem sido feita ao acolhimento em Portugal tem a ver com a descoordenação na ajuda aos refugiados ucranianos. Concorda com esta crítica?

Tem havido um enorme esforço de coordenação entre todas as entidades envolvidas neste processo: governo central, municípios e sociedade civil que, como sabemos, está muito mobilizada, não só no âmbito das associações ucranianas, mas também de cidadãos portugueses, até alguns individuais, que se estão a mobilizar para trazer pessoas. Portanto, os desafios são múltiplos na articulação entre entidades diversas que atuam a diferentes níveis e com escalas diferentes. Para além da articulação muito próxima entre as entidades do governo central – foi criada uma task force envolvendo as várias áreas governativas para esta articulação –, do lado do ACM mantemos uma comunicação regular muito próxima com as associações, bem como com os municípios para sermos informados, na medida do possível, dos movimentos de chegada que requerem apoio e auxílio. Procuramos transmitir o máximo de informação e fazemos um apelo regular para que possa haver uma articulação dos que estão a organizar transferências ou idas diretamente a países de fronteira com a Ucrânia, para que possam estar devidamente coordenados com as entidades públicas que intervêm nesta matéria quer a nível local, quer a nível central. Isso facilitará a coordenação.

O que é importante é que esse voluntarismo e essas ações de solidariedade possam ser articuladas com as entidades.

Referiu há pouco a mobilização da sociedade civil em torno da Ucrânia e dos refugiados que dali vêm. O voluntarismo de alguns portugueses que têm ido à fronteira da Ucrânia resgatar refugiados pode pôr em risco a sua integração?

Pôr em risco a sua integração talvez seja excessivo… Uma vez chegadas a Portugal, estas pessoas entram nos mecanismos que estão disponíveis para promover a integração. O que é importante é que esse voluntarismo e essas ações de solidariedade que partem da iniciativa individual, da relação de empatia que se estabelece com o conflito na Europa, possam ser articuladas com as entidades. Que [esses voluntários] possam procurar a informação necessária para que [essas ações] ocorram de forma organizada e segura, para que quem beneficia desses processos de transferência também sinta segurança. Existem riscos de desconfiança e de desinformação. É muito importante que quem queira organizar transferências procure informação, nomeadamente no portal que o governo criou, portugalforukraine.gov.pt , para perceber o enquadramento e poder apoiar as pessoas, quer no processo, quer após a chegada a Portugal.

Alguns meios de comunicação têm dado conta do risco de muitos refugiados puderem ser aliciados por redes de tráfico de seres humanos. Têm conhecimento de casos deste tipo?

Começamos a perceber que há alguns sinais que indiciam situações menos claras na organização destas transferências. Por isso mesmo, estamos a trabalhar em materiais para alertar para os riscos do tráfico, para sensibilizar as pessoas sobre os procedimentos e sobre aquilo que, no processo de transferência, deve levantar suspeitas, para minimizar esses riscos. Estamos muito atentos ao acompanhamento que fazemos, para podermos sinalizar imediatamente às autoridades competentes situações suspeitas.

Como por exemplo?

Referências a terem pagado determinados valores para organizar a viagem, haver alguém que organiza a viagem que tem um registo criminal. Perante qualquer indício nós sinalizamos. Não queremos correr riscos. Depois necessariamente terá que haver um processo de averiguação. As autoridades estão bastante atentas a um conjunto de sinais, para que se possam sinalizar [situações], desde o início.

E têm sido detetados casos em Portugal?

Têm sido detetados alguns indícios que são imediatamente reportados, como de resto fazemos em todos os movimentos e atendimentos nos nossos centros. Desde sempre, tivemos um ponto focal para sinalizar situações de tráfico, quando os migrantes, no nosso atendimento, referem práticas que podem indiciar alguma suspeita. Depois, obviamente o processo policial corre por si.

As possibilidades de integração plena dessas pessoas na sociedade portuguesa são muito altas.

Tem havido uma onda de solidariedade para com os refugiados vindos da Ucrânia. Acredita que a possibilidade de uma crise pode inverter esta situação, originando comportamentos xenófobos?

Aquilo que observamos, pelas experiências passadas, é que a ideia de haver pessoas de outros países que entram de forma massiva num determinado território pode gerar desconfiança. Mas também sabemos que o que contraria essa desconfiança é perceber que esses movimentos estão enquadrados, que há condições para que essas pessoas se integrem e contribuam para o nosso mercado de trabalho que, neste momento, atravessa uma crise de necessidade de mão-de-obra enorme. As possibilidades de integração plena dessas pessoas na sociedade portuguesa são muito altas e os riscos são maiores quando estes movimentos se associam à criação de bolsas de pobreza. Neste momento, estão a ser postos em prática todos os esforços, nomeadamente para facilitar o acesso ao mercado de trabalho, para que possa haver esse mecanismo de integração rapidamente.

A questão-chave da integração é o mercado de trabalho?

Sim.

Portugal já concedeu mais de 16 mil pedidos de proteção temporária a cidadãos ucranianos. Até onde poderemos ir?

Ainda não foram concedidos do ponto de vista formal, mas foram aceites, registados esses pedidos de proteção temporária. Não temos, neste momento, uma previsão do limite. Estão a chegar pessoas todos os dias, muitas delas com familiares e amigos que se encontram em território nacional. Temos também um número alto de ofertas de trabalho registadas, mas sabemos que não são apenas aquelas. Haverá muitas mais que não passam por este processo que o IEFP está a centralizar. Somos o País que, após o processo de descolonização, integrou 500 mil pessoas. Ainda não temos razões para temer uma rutura.

Os migrantes habitualmente contribuem mais para o sistema de segurança social do que usufruem.

Considera que é preciso alterar a legislação para acolher estes novos refugiados?

A legislação adapta-se às necessidades que vão surgindo e já há esforços nesse sentido, nomeadamente no que tem a ver com a flexibilização de alguns processos de reconhecimento de competências, por exemplo, no ensino superior. Há um conjunto de diplomas legislativos que estão a ser emitidos nesse sentido. Esse processo está aliado a este trabalho mais operacional que também fazemos para promover a integração.

Quanto é que este apoio aos refugiados ucranianos implica nos cofres do Estado?

Tudo dependerá da rapidez com que eles se integrem no mercado de trabalho. Numa primeira fase, quem não se integre no mercado de trabalho tem direito às prestações sociais disponibilizadas pela segurança social no regime não contributivo. Podem também aceder a financiamento no âmbito do alojamento, ao programa Porta de Entrada, que tem um financiamento que ainda pode ser utilizado para apoiar estes cidadãos. Também sabemos que os migrantes são globalmente contribuintes líquidos para os nossos sistemas de segurança social e Portugal é um desses casos. Mesmo que exista uma fase inicial em que necessitem de maior apoio, havendo uma expectativa de integração no mercado de trabalho, a experiência diz-nos que os migrantes habitualmente contribuem mais para o sistema de segurança social do que usufruem.

Estes fundos que podem ser necessários, agora nos primeiros tempos, podem ser contemplados no orçamento do Estado de 2022?

O processo do Orçamento do Estado está parado até à constituição do novo governo. Portanto terá de ser avaliado assim que o novo governo tome posse. Aquilo que está previsto no âmbito da União Europeia é que eventualmente haja uma canalização de fundos europeus para apoiar esta resposta dos Estados-membros ao acolhimento de refugiados da Ucrânia.

O PRR vai contemplar o acolhimento destes refugiados?

São outros mecanismos financeiros que existem ao nível da União Europeia para apoiar respostas no âmbito da integração. Podem envolver tanto os fundos de coesão, como o fundo asilo, migrações e integração. São tudo respostas que podem contribuir para financiar os Estados-membros que necessitam de reforçar a sua capacidade no âmbito da integração de pessoas refugiadas da Ucrânia e que estão, neste momento, a ser negociados em Bruxelas.

Conseguimos canalizar algumas das respostas usadas na emergência para a Ucrânia, para apoiar outros refugiados que estão em Portugal.

Com a mudança de governo, e a nova legislatura, que alterações espera nas pastas que têm a ver com migrantes?

Havendo uma manutenção do mesmo partido no governo, a expectativa é que seja de continuidade em relação àquilo que vinha a ser feito em termos de política, mas nem eu, nem ninguém ainda sabe quem vai ser o próximo governo. Portanto é difícil saber, mas perspetiva-se que haja uma continuidade e uma aposta clara nas migrações como um recurso para o País e um reforço das respostas de integração.

Com a guerra na Ucrânia, os refugiados provenientes de outras regiões parecem ter sido esquecidos, pelo menos no espaço público. A questão continua latente ainda assim…
O Alto Comissariado para as Migrações intervém essencialmente no acompanhamento a refugiados que vêm para Portugal ao abrigo dos mecanismos de solidariedade internacionais. A recolocação, nomeadamente ao abrigo do acordo bilateral com a Grécia e do acompanhamento de menores não acompanhados da Grécia, continua. Continuamos a apoiar e a promover a integração dos menores já acolhidos por Portugal, a organizar as transferências de menores que ainda estão na Grécia e que fazem parte deste grupo de acolhimento, assim como a apoiar nos processos de integração os afegãos em risco que foram acolhidos, no âmbito de uma operação de emergência. Temos, ainda, o programa de reinstalação que está em fase de transição, mas que poderá vir a ser retomado em breve. O nosso trabalho continua efetivamente junto de todos os refugiados, bem como das entidades que promovem a sua integração no nosso país. Também posso dizer que já conseguimos canalizar algumas das respostas usadas na emergência para a Ucrânia, para apoiar outros refugiados que estão em Portugal e que também precisam de respostas.

Tem-se falado numa possível alteração da rota dos refugiados no Mediterrâneo. A costa portuguesa está a ser mais procurada por refugiados vindos do norte de áfrica?

Não temos nenhum indício nesse sentido.