A infância é um período da vida marcado pela absorção acrítica das cosmovisões parentais, e é sempre delicioso observar como as crianças, já sem argumentos, lançam a cartada final do que “o meu pai diz” ou “a minha mãe faz”.
Mas a formação dos valores, morais e políticos está, sobretudo, marcada pelo acesso ao relativismo cognitivo que ocorre durante a adolescência, essa perceção consciente de que o ponto a partir do qual observamos um fenómeno faz variar a forma como o representamos internamente e que vivemos, pois, num mundo de diferenças, quando não, de oposições.
No contexto mais amplo do acesso ao pensamento formal, esta aquisição marca a entrada na adolescência. Durante este período crucial da construção da identidade, cada pessoa tenderá a esticar a corda que a unia às suas figuras de referência – os pais ou seus substitutos – para se sentir esperançada quanto à possibilidade de habitar o mundo de moto próprio, navegando lentamente as suas experiências até ao julgamento moral autónomo e à definição de valores em termos de direitos individuais gerais e princípios éticos universais, e uma adesão livre ao que é justo.
Enquanto isto, nas escolas, a função formadora dos professores é entendida de forma muito variável. Há alguns que entendem ser seu dever catequizar os alunos para as suas preferências políticas e morais, defendendo que é pernicioso deixá-los entregues ao acaso e às manipulações e, em muitas matérias, têm razão.
Como só o diálogo racional e fundamentado pode verdadeiramente educar e, ainda assim, compete com toda a tralha de informações díspares, essa missão parece realizar-se apenas numa pequeníssima parte dos alunos. E surge não pelo desejo de se ser moralizado, mas mais por vontade de agradar a certos professores, identificados como os modelos mais fortes ou mais próximos, num momento fugaz.
É, pois, muito difícil alinhar todas as estrelas com estas idas e vindas adolescentes que, instáveis e irregulares, são um processo crucial de preparação para as escolhas adultas, um ensaio sobre que líderes seguir, que ideias pensar, e um modo relativamente experimental de identificação das nossas preferências, num mundo marcado pela divergência e a quase infinita oferta de soluções.
Assim, as famílias educadoras não devem recear a influência da escola, já que esta, como micro sociedade, oferece sobretudo uma experiência controlada de variedade ideológica e social que favorece o desenvolvimento de uma cidadania madura, a capacidade de viver a diversidade sem destruição.
E também nos desmobiliza do recurso ao tribalismo violento que nos impele a rejeitar todos quantos pensam ou agem de modo díspar do nosso. Depois, a influência infantil da família emergirá, com esplendor, quando somos chamados a educar e a formar outros, e nos damos conta de quanto há dos nossos pais na cristalização das nossas atitudes.
Devo acrescentar que, em três décadas de visita às escolas, verifiquei que a maioria dos projetos de educação para a cidadania ou para a sexualidade – permeados pelo generoso embaraço dos docentes, pouco convencidos ou preparados – estava alicerçada numa visão naïf, vagamente estruturada numa informação “higienista” que educa a pessoa para uma sexualidade integrada e harmoniosa ou para uma cidadania participativa tanto como o conhecimento da estrutura do aparelho digestivo previne a obesidade mórbida.
Mas se na escola só se consegue trabalhar bem aquilo que concorre para a meta que a distingue das outras instituições, como há na sexualidade muitíssimo que não é sexo e o exercício da cidadania não precisa de esperar pela maioridade votante, essas competências cruciais devem ser desenvolvidas de forma sistemática, acessíveis a todos e treinadas em conjunto com os adultos relevantes, seguros e instruídos que são os professores.
Ainda assim, temas como a sexualidade, que são tão eticamente marcados, exigiriam uma programação detalhada, centrada nas perguntas daqueles alunos em concreto, e deveriam ser discutidos e aprovados pelos pais, ajudando-os também a assumir a sua parte.
De qualquer modo, tenho encontrado nas escolas, sobretudo, professores seriamente preocupados com os seus alunos, às vezes em situações limite, geografias humanas de enorme pobreza, não aquela, bucólica e conformada que imaginam as nostalgias de direita, nem a revolucionária e aberta à causa que gostam de conceber as esquerdas.
Trata-se de uma pobreza material e espiritual constante, promotora do violento niilismo que nasce da guetização sistemática favorecida pelas urbes anónimas, onde as crianças e os adolescentes estão entregues a si mesmos e só na escola encontram a orientação e a proteção que lhes é essencial e devida.
E nesta sabe-se bem como é difícil inoculá-los contra a marginalidade, ou ajudá-los a evitar as escolhas precoces que destruirão imediatamente todas as suas possibilidades de escapar à reprodução sistemática de todas essas infelicidades estruturais.
É por tudo isto que, com imensas limitações e eventuais enviesamentos, a educação da cidadania e a educação para a saúde são causas maiores dos sistemas educativos europeus.
Devem continuar a ser discutidas e aprofundadas, pois é absolutamente certo que as instituições educativas – família, Igrejas e escolas – estão a perder terreno para outras formas de influência irresponsável e, risco dos riscos, impossível de escrutinar.
Mas também é essencial aumentar a transparência das escolas quanto aos seus valores, pois a questão da neutralidade do estatal é apenas uma ignorância conveniente da letra da Constituição, uma desresponsabilização das comunidades educativas, sem as fortalecer, face às suas constantes opções. E julgo essencial que a escola tenha os meios para acompanhar melhor as famílias e para trabalhar com elas um projeto de formação comum, dialogado, verdadeiramente educativo e democrático.
Tudo isto vem a propósito desta saga infindável e infeliz que se abateu sobre os tristemente famosos adolescentes de Vila Nova de Famalicão.
Um assunto que deveria ter sido rapidamente tratado, portas a dentro, foi alvo de um estranho canibalismo mediático e de uma teimosia ideológica que não parece contribuir para a liberdade de consciência e nem advogar pelos direitos de proteção dos alunos.
E o que é que pensam estes miúdos sobre as promessas de exceção que arremetem, cheias de intenções, sobre a sua consciência cidadã em formação?
Oxalá na sua escola os professores tenham tratado do tema e, depois, em casa, os pais tenham fornecido honestamente as alternativas fundamentais que ajudam cada pessoa a construir a sua própria cosmovisão.
Os pais e os professores que são instruídos e reflexivos sabem que a escola, como o mundo, não se confunde com uma coutada pessoal, mas é um espaço em que se constrói, a partir do muito que nos separa, aquilo que, por definição, já nos é comum. Só assim se garante que a herança e a esperança chegam a todos, como um imperfeito, mas indispensável, processo de humanização.