“Há mulheres que negoceiam as licenças de maternidade e que não as gozam” com medo de perder o emprego. A denúncia é de Maria Neves Jesus, dirigente da Liga Operária Católica do Porto (LOC).
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, esta professora deslocada revela que as mães “não querem correr o risco” de, após o gozo da licença, “ter outra pessoa no lugar”.
Neste Dia do Trabalhador e Dia da Mãe, Maria Neves Jesus garante também que, por norma, ninguém adere à redução de horário prevista na lei para mães com filhos pequenos. “Depois acabam por ser penalizadas, porque o salário já é pequeno”, afirma.
Por outro lado, a professora natural de Santa Maria da Feira e que passa toda a semana longe da família, nas Caldas da Rainha, onde leciona, assegura que “a família não é prioridade e não é tida em conta, não está no pensamento de quem gere as coisas”.
Maria Neves Jesus chama a atenção para a “questão do burnout, do desgaste físico e psicológico a que as pessoas estão sujeitas”, e afirma que “quem trabalha nas grandes superfícies corre o risco de não ter um dia para sair com os seus filhos para passear, para ir ao parque, fazer férias”.
Comecemos por conhecer melhor a história de uma mãe, professora, que está longe da sua família para trabalhar. Conte-nos a sua história.
Sou Maria das Neves, sou de Santa Maria da Feira, tenho 43 anos e, neste momento, sou professora do 1.º ciclo nas Caldas da Rainha. Passo a semana toda fora da minha família: ao domingo venho no comboio, à noite, e regresso na sexta-feira, ao final da tarde.
Que desafio enfrenta para conciliar a vida familiar com a vida profissional?
É um desafio grande. No início foi mais difícil! Sempre foi minha opção nunca estar longe dos meus filhos, dois meninos - um de 11 e outro de 6 anos – e do meu marido. Sempre optei por trabalhar perto de casa, inclusive deixei de ser professora para poder acompanhá-los e estar perto deles enquanto eram mais pequenos.
O tempo foi passando e, a determinada altura, fiz a opção de voltar. O voltar teve esta consequência: deixá-los. É um desafio grande porque eles ficam toda a semana sem a mãe e eu fico sem os filhos. Emocionalmente, é um bocadinho complicado. Claro que tenho um companheiro, um marido, que é um excelente pai, faz o melhor que consegue e vai dando resposta da melhor forma possível.
E já retomou a vida profissional há muito tempo?
Este é o segundo ano que estou colocada.
E sempre longe...
O ano passado estive na Póvoa de Varzim, mais perto de casa: ia e vinha todos os dias (estava a 70 quilómetros de casa). Acabava por estar muito pouco tempo em casa, mas este ano estou mesmo ausente durante a semana.
Tem a experiência de passar grande parte do tempo longe da família, longe dos filhos. O que sugeria ao Governo português para se tentar a proximidade com a família?
Claro que os professores são uma realidade muito própria. No passado havia algum apoio: a partir de um determinado número de quilómetros, podíamos pedir para estar mais perto. Neste momento não há essa possibilidade, tem de ser mesmo! É uma opção pessoal, para ter tempo de serviço.
A realidade é que – e isto é transversal a todos os setores – não há a preocupação por saber se a trabalhadora é mãe, se tem filhos pequenos. As condições do mercado de trabalho são estas e nós aceitamos ou não. É uma escolha pessoal. Nunca está em cima da mesa a conciliação da vida familiar com a vida profissional.
Temos algumas proteções na maternidade, por exemplo, mas depois é a realidade. Ou optamos por não ir, e ficamos com penalizações em termos de carreira, de vida profissional, ou vamos e arcamos com as consequências. Não temos muita escolha!
O que fazer para haver alguma mudança? Um apoio salarial podia ajudar?
Para mim não é uma questão de salário. Se falarmos de outras situações, sim, é uma questão de salário. Mas na questão da conciliação da vida familiar com a vida profissional não é uma questão de salário. É uma questão de horários e de distâncias que temos de fazer.
Em Portugal, está na lei que nós podemos ter uma redução se tivermos filhos pequenos, mas isso praticamente não é utilizado pelas trabalhadoras.
E porquê?
Porque acabam por ser penalizadas. Efetivamente, podemos negociar com a entidade patronal mas, se o salário já é pequeno e vamos negociar a entidade patronal, o salário ainda fica mais pequeno.
Defenderia regras diferentes para a colocação de professores, por exemplo?
Neste momento é uma grande discussão, porque há falta de professores, mas as regras do concurso têm de ser revistas: a questão da deslocação, sendo homem ou sendo mulher - estamos a falar da mãe, mas se falarmos do pai é igual. Há muitos professores, pais, que estão muito distantes de casa e fazem falta aos filhos. Depois, a questão dos deslocados que pagam rendas, portagens, combustível... No meu caso, por exemplo, fica metade do salário numa casa (um quarto), em portagens e em combustível.
Acredito que é um problema que não se coloca a si, por causa da escola. Mas noutros casos de mães trabalhadores isso acontece: ter o domingo livre como espaço para a família, descanso, lazer, culto, formação. Tem conhecimentos de muitos casos em que isso acontece?
É uma realidade! Posso relatar uma situação que presenciei nas minhas compras: duas trabalhadoras de uma grande superfície, uma contava à outra que tinha pedido o dia para festejar os anos do filho e não lhe tinha sido concedido o dia de aniversário do filho como folga. O que é que custava gerir entre as colegas para permitir àquela trabalhadora ter folga no dia de aniversário do filho?
É uma questão de pura falta de sensibilidade ou necessidade de legislação?
Acho que primeiramente é uma questão de sensibilidade. Isso só demonstra que a questão da família não é prioridade! Não é tida em conta, não está no pensamento de quem gere! Se a pessoa tivesse isso como preocupação, se fosse um motivo de reflexão, ao fazer a gestão de recursos humanos podia dizer: “esta trabalhadora tem um filho que faz anos, podemos trocar”.
Não acredito que, depois de uma conversa entre as outras trabalhadoras, isso não fosse facilitado. Hoje sou eu, amanhã és tu. Claro que não se vai pôr na lei “dar o dia de folga à trabalhadora no dia de aniversário do filho”. Não é possível. A questão da sensibilidade é muito importante.
Enquanto dirigente da LOC, pergunto-lhe se continua a ser fundamental discutir o tema da dignidade do trabalho?
Claro que sim. Por exemplo, a questão do domingo livre - e nem falo da minha realidade, que é muito própria - é muito importante. Há muitos espaços abertos que implicam que trabalhadores e trabalhadoras estejam lá, a cumprir o seu horário. É uma questão de dignidade!
Neste momento, quem trabalha nas grandes superfícies corre o risco de não ter um dia para sair com os seus filhos, para passear, para ir ao parque, fazer férias. Nos dias em que os filhos estão em casa, provavelmente não estarão ou só de longe a longe. Há questões novas que têm de ser refletidas.
Na LOC, estávamos habituados ao discurso das fábricas, da entidade patronal que explora os trabalhadores. Neste momento, na LOC temos de olhar para realidades novas.
Há outro tipo de exploração?
Há outros tipos de exploração. Gente qualificada. A questão do “burnout”, do desgaste físico e psicológico a que as pessoas estão sujeitas, até pessoas com muita qualificação: o cumprimento de prazos, a constante necessidade de dar resposta a alguma coisa, os telemóveis que têm de estar constantemente ligados porque este vai telefonar. Há uma série de realidades que neste momento já não são realidades da fábrica.
A legislação já prevê o direito a desligar.
Eu sei. Mas tenho um marido, em casa, e o telemóvel dele toca às 11h00 da noite ou à meia-noite. E não é um trabalhador por conta de outrem, é gerente de uma empresa.
Isso é consequência da pandemia e do teletrabalho?
Não só. A legislação que veio ter essa questão em conta foi da pandemia. Com o teletrabalho misturaram-se muitos espaços: o do trabalhador e da casa, que passou a ser escritório, ginásio, parque infantil... passou a ser muita coisa. Depois, começou a ser difícil fazer a separação.
Mas a questão do "burnout" e do desgaste psicológico já se falava antes da pandemia. Aumentou com a pandemia. A pandemia misturou os espaços e fez com que as pessoas tivessem mais dificuldade em fazer essa separação. Mas são realidades que já vêm antes da pandemia.
E é necessário alterar a legislação laboral?
Não sei dizer se é só uma questão de legislação. Concordo com o que vocês, há pouco disseram. Acho que muita coisa também tem a ver com a sensibilidade de quem gere as empresas. Esta questão da corrida, de quase olharmos o trabalhador. Há uns anos, quando eu fui dirigente da JOC [Juventude Operária Católica], tivemos uma campanha nacional que era: trabalhador, o boneco de produção. E às vezes nós olhamos a pessoa, e nós olhamos o mundo empresarial e não só; o mundo do trabalho olha o trabalhador - a pessoa do trabalhador - quase com mais um fator que entra na produção, mas que não é quase humano. E é mais uma coisa que entra. E não se tem em atenção que o trabalhador é uma pessoa que tem projetos, que tem sentido de realização, que tem família, que quer ser feliz.
Quase que se trata o trabalhador como um mero meio de chegar a uma palavra que eu não gosto muito; para se chegar ao lucro: E, portanto, o objetivo é a rentabilidade, e produtividade e não se tem em conta o trabalhador como pessoa. E as pessoas têm que dar o máximo.
E acredito que muito menos tenha em conta a família?
Sim, isso não é tido em conta. Eu conheço situações - e eu não concordo com elas porque são um retrocesso - em que há mulheres que negoceiam as licenças de maternidade e, portanto, não as gozam. Ou melhor, gozam, mas depois, na prática, não gozam porque o telemóvel continua a tocar, os emails continuam a tocar.
Portanto, um direito que foi conquistado com muito esforço, neste momento já é muito relativizado e isso é uma questão muito importante. Porque corremos o risco. E aqui as mulheres têm um papel muito importante de nem sequer abrir essa possibilidade, porque, se vamos abrir essa possibilidade, perdemos um direito fundamental que demorou muito tempo a conquistar.
Como se negoceia a licença de maternidade?
É por exemplo, dizer que se está a gozar a licença, e está-se em casa efetivamente. Mas o computador faz muita coisa, não é?
E continua-se a trabalhar?
Continuamos a trabalhar. Ou seja, continua-se a trabalhar para não correr o risco de quando se chegar lá, quando acabar os quatro ou cinco meses, termos outra pessoa no nosso lugar. É tão simples quanto isso.
Toda esta situação foi agravada pela pandemia também por causa da guerra. Sente que há postos de trabalho que estão em risco e que se pode precipitar uma nova onda de desemprego?
Eu não sei se neste momento já se pode dizer isso. Fala-se que vem aí uma grande crise. Fala-se que as coisas vão ficar muito complicadas. Eu ainda tenho alguma dificuldade em dizer isso, porque neste momento o mundo muda muito rapidamente e, portanto, não sei o que vai acontecer. Agora que há gente entendida na área da economia, que diz que sim, que vem aí uma grande crise, sim.
Portugal vive um grave problema relacionado com o Inverno demográfico. E ainda agora, de acordo com o INE, agravou-se o saldo natural da população, com mais mortes e menos nascimentos. O Instituto Nacional de Estatística adianta que, no ano passado, nasceram menos 4. 948 crianças do que no ano anterior. Morreram mais 1.444 pessoas. Falta uma verdadeira política de apoio à natalidade?
Eu acho que não há. Há uns tempos, alguém perguntava: “mas o que é que é preciso fazer para que nasçam mais crianças em Portugal?” É assim, eu tenho dois filhos e para mim sempre foi preocupação ter filhos. Sempre achei isso como importante. Agora, claro, nós temos salários muito baixos em Portugal. Eu às vezes digo ao meu marido: “eu não sei como é que famílias com dois salários mínimos conseguem sustentar uma casa”, porque, neste momento, a maior parte das famílias tem que pagar a casa, muitas delas têm que pagar carro, tem que pagar despesas com quatro pessoas, por exemplo. E, estou apenas a falar de uma família de quatro pessoas, que é como a minha.
Portanto, toda a gente tem que viver com dignidade, porque temos que ter comida na mesa. Temos que trazer os miúdos vestidos e os miúdos estão sempre a crescer e precisam consecutivamente de roupa nova, etc…
Depois, neste momento, a sociedade do bem-estar, digamos assim, apresenta-nos numa sociedade modelo em que as crianças, às vezes, causam alguns transtornos. E, portanto, ter um filho impede de fazer uma série de outras coisas que até são muito agradáveis.
Portanto, alguns casais preferem não ter crianças. Mas, eu acho que aqui os salários, a questão dos salários e da gestão do orçamento familiar, se calhar é a situação mais grave neste momento, porque as pessoas não conseguem dar resposta a tantas necessidades.
Um comentário à mensagem da Comissão Episcopal Laicado e Famílias, sobre as mães coragem ucranianas que estão em Portugal. “Este ano, não podemos ficar indiferentes aos muitos relatos provocados pela guerra na Ucrânia e feitos por tantas e tantas mães obrigadas a opções dolorosas para salvarem os filhos dos perigos e porventura da morte”. Que atitude vê na sociedade portuguesa e como olha para estas mães que fogem da guerra? Como olha para toda esta situação?
É as mães coragem, não é. Eu acho que há coisas que nós acabamos por não ter muito a dizer, porque são realidades tão marcantes e que nós nunca sequer tocamos nelas. Nem sequer as conseguimos imaginar, e eu sinto-me muito pequenina para dar uma opinião sobre uma coisa dessas. O que eu vejo na sociedade portuguesa é que houve, pelo menos nesta primeira fase, um grande acolhimento. Neste momento, nas escolas também já temos crianças ucranianas.
Já tem crianças na sua sala de aula?
Na minha sala não, mas tenho na escola onde estou. E, portanto, está-se a fazer um esforço também grande no sentido de acolher essas crianças. Portanto, eu acho que a esse nível os professores e a escola portuguesa, mais a escola pública faz, a esse nível, um grande esforço.
Eu estou aqui nas Caldas da Rainha e temos muitas crianças, mesmo não sendo refugiadas da guerra, mas temos muitos filhos de imigrantes e, portanto, a escola portuguesa faz um grande esforço para acolher bem e faz o melhor que consegue para acolher bem.
Depois as crianças que vêm de fora, normalmente, são crianças que aprendem bem, que vêm com vontade de aprender e que não causam problemas. As pessoas às vezes têm muito medo dos imigrantes. Não. De uma forma geral, nós não temos problemas com imigrantes. Podem eles ter dificuldades até na integração inicialmente, mas depois de adaptam-se, e aprendem bem porque têm muita vontade de aprender. Portanto, eu penso que nesta primeira fase, estão a ser bem recebidos. Está-se a fazer o máximo que se consegue.