Está na moda desancar o Banco Central Europeu (BCE) pela subida das taxas de juros, de maneira que peço desculpa ao eventual leitor para insistir no tema - e defender o BCE, que não faz mais do que cumprir a missão que lhe foi atribuída nos Tratados Europeus: manter a estabilidade de preços.
Entende-se que a estabilidade de preços corresponde a uma inflação de cerca de 2%. Como a inflação na zona euro era, em maio, um pouco maior do que 6%, o BCE está a fazer o que entende que deve ser feito para atingir o objetivo de 2%. Ou seja, o BCE tem estado a levar na cabeça por estar a fazer aquilo que deve fazer. Faz sentido?
É estranho, mas quando há bancos centrais independentes e com a obrigação de promover a estabilidade do nível de preços, seja lá onde for, aparecem sempre políticos que acham que as taxas de juro sobem de mais ou descem de menos. Acham isto por três grupos de razões. Em primeiro lugar, porque se preocupam com os eventuais efeitos negativos de um aumento das taxas de juro no investimento e na economia, principalmente em caso de recessão. Em segundo lugar, porque têm em conta os prejuízos que esse aumento pode causar em muitas famílias que tenham dívidas, na maior parte dos casos com origem na compra das suas casas. Finalmente, num cenário mais tipicamente europeu, os políticos preocupam-se com o aumento das taxas de juro porque acham que pode provocar uma nova crise de dívidas soberanas.
É preciso temperar algumas destas críticas com uma pitada de sal. Não combater a inflação também tem custos. A inflação pode prejudicar o investimento, e os efeitos negativos das políticas de controlo da inflação no investimento, a existir, desaparecem à medida que a inflação é controlada. Combater a inflação tem efeitos sociais negativos, mas deixá-la sossegada também tem. Basta recordar os clamores do ano passado contra os aumentos de preços e contra a especulação.
Dito isto, as preocupações dos políticos têm razão de ser. Só que têm pouco ou nada a ver com o BCE. A União Europeia baseia-se em regras, destinadas a resolver muitas questões suscetíveis de prejudicar as economias dos estados-membros, o Mercado Único e, em última análise a própria União. Algumas dessas questões são sexy, como as relacionadas com a dívida pública, o euro ou a inflação, e atraem os políticos, os media e o ocasional comentador de coisas de economia. Outras são mais obscuras, como a normalização das maçãs ou dos talheres. São vistas como uma seca, a não ser pelos diretamente interessados. Mas em qualquer caso a discussão política deve respeitar as regras da União, sob pena de perder credibilidade.
No quadro da subida das taxas de juro é claro que os problemas sociais devem ser enfrentados em primeiro lugar a nível nacional. Aqui temos de pensar no grau de proteção contra riscos económicos que pretendemos que o estado garanta a cada um. O estado providência procurou proteger a generalidade das pessoas dos riscos de doença e de desemprego. Queremos também um estado que garanta proteções contra o risco de medidas de combate à inflação sempre que alguém compre uma casa? Ou contra o risco de inflação sempre que se compra um quilo de batatas? De forma geral: até que ponto é desejável socializar o risco que está presente nas decisões económicas individuais? Até que ponto estamos dispostos a pagar mais impostos para financiar essa socialização do risco?
Problemas como o risco de uma recessão ou de uma crise de dívidas soberanas devem começar por ser tratados também a nível nacional. Os governos dos estados-membros da União conservam a possibilidade de intervir nas economias, e de as dinamizar em caso de recessão. Mas têm limites. O principal é o dever de não meter o país em alhadas, como crises de dívida soberana.
Temos de pensar nestas coisas seriamente. Desde a pandemia, a resposta quase unânime dos vários partidos a qualquer problema é aumentar a despesa ou reduzir os impostos. Não é realista. De forma geral o país teve uma boa recuperação da crise nos últimos 10 anos e, apesar de sobressaltos como a crise bancária, a TAP ou a pandemia, as contas públicas têm andado no sentido certo. Mas não faz sentido falar de folgas orçamentais e coisas do género com a dívida pública que temos. Para mais num cenário de subida de taxas de juros e de exigências crescentes em matéria de políticas sociais – e de segurança e defesa, convinha não esquecer.
Enfim, se as coisas derem para o torto, há instituições europeias. A política orçamental também está condicionada pelos Tratados, designadamente no que diz respeito aos limites de 3% para o défice e de 60% para a dívida pública. A experiência das duas últimas décadas mostrou que se trata de uma área em que a governação europeia precisa de ser aperfeiçoada.
Há uma proposta recente da Comissão sobre o assunto. Parece haver a ideia de dar mais autonomia aos estados-membros, mas o assunto não é pacífico e inevitavelmente aparecem as clivagens entre o Norte, o Sul - e o Leste. Por outro lado, se apesar disto houver uma nova crise de dívidas soberanas, o Instrumento de Proteção da Transmissão, criado em 2022 deve permitir completar os meios à disposição do BCE. Obviamente, não se sabe como vai funcionar na prática. Todas estas circunstâncias criam alguma incerteza sobre os cenários em caso de crise futura, o que mais reforça a necessidade de haver agora prudência em matéria orçamental.
Em síntese, as preocupações políticas sobre a subida das taxas de juro entendem-se facilmente dados os problemas económicos e sociais que lhe podem estar associados. Mas, se as querem levar a sério, os políticos fariam melhor em desancar menos o BCE e trabalhar mais nas áreas em que podem e devem intervir – sem nunca esquecer as possibilidades económicas reais do país.
João Confraria é professor na Católica Lisbon Business School & Economics
Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics