O Tribunal Constitucional (TC) pronunciou-se esta quinta-feira pela inconstitucionalidade da lei dos metadados.
A decisão já foi comunicada ao PCP, partido que teve a iniciativa de pedir em janeiro de 2018 a fiscalização sucessiva da lei, na qual contou com o apoio do PEV e do Bloco de Esquerda, num total de 35 deputados da Assembleia da República. O acórdão já deu entrada no Parlamento.
A chamada lei dos metadados permite aos serviços secretos o acesso a dados de comunicações entre pessoas sem ser no âmbito de um processo criminal.
"A exigência de autorização judicial não dá (...) garantias suficientes de que a ingerência na privacidade dos cidadãos se cinge ao mínimo necessário e proporcional", pode ler-se no acórdão, que acrescenta que a norma "remete para uma prerrogativa de avaliação do Serviço de Informações de Segurança (SIS) e do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) que frustra o equilíbrio que apenas o escrutínio judicial rigoroso de cada pedido de acesso pode assegurar".
Assim, o legislador tem "o ónus de concretizar, de forma rigorosa e precisa, quais os critérios suscetíveis de justificar, nos termos do artigo 3 da Lei Orgânica n.º 4/2017, o acesso, por entidades públicas, aos dados de base e de localização de equipamento dos cidadãos".
O diploma, que foi promulgado pelo Presidente da República há dois anos, resultou de uma proposta do Governo e de um projeto do CDS e teve propostas de alteração do PSD. Foi, portanto, aprovada por PS, PSD e CDS e teve os votos contra da esquerda.
Marcelo promulgou o diploma, alegando esse consenso político e jurídico entre os partidos.
O TC admite porém o acesso das "secretas" a estes dados em caso de suspeitas de terrorismo ou espionagem. O coletivo de juízes decidiu deixar passar a norma do diploma "na parte em que admite o acesso dos oficiais de informações destes serviços no âmbito das respetivas atribuições, relativamente a dados de base e de localização de equipamento, quando não dão suporte a uma concreta comunicação, para efeitos de produção de informações necessárias à prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada".
Juízes com dúvidas
O acórdão elaborado pelo relator Lino Rodrigues Ribeiro teve votos em conformidade dos elementos do Palácio Ratton, mas com um total de 10 declarações de voto e posições de "vencido parcialmente" por 11 dos 13 juizes-conselheiros. Catarina Sarmento e Castro e Maria Clara Sottomayor, que também votaram vencidas quanto à alínea b) do acórdão, não assinaram o documento por, entretanto, terem cessado funções.
O próprio relator do processo faz uma declaração de voto, em que refere ter votado vencido em relação à alínea a da decisão do TC, que declara a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 3.º da Lei em causa, "na parte em que admite o acesso dos oficiais de informações do SIS e do SIED, relativamente a dados de base e de localização de equipamento, quando não dão suporte a uma concreta comunicação, para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional e da segurança interna".
"Em meu entender, a norma extraída do referido artigo 3.º não atribui aos oficiais de informação do SIS e do SIED um poder irrestrito de aceder aos dados de base e aos dados de localização", sustenta Lino Rodrigues Ribeiro.
Por outro lado, outro juiz, João Pedro Caupers, é bastante explícito e defende mesmo a inconstitucionalidade da parte da lei que foi considerada constitucional. "Não me venham dizer que a intromissão dos serviços de informações prevista nos artigos 3.º e 4.º, limitando embora, em grau muito significativo, a minha liberdade, é indispensável para que o Estado possa defender a minha segurança. Já ouvi isso, noutros tempos e em outros contextos. Se tivesse de escolher entre defender a minha segurança ou proteger a minha liberdade (..), optaria, sem hesitar, pela liberdade".
"Tínhamos razão", diz PCP
O PCP, sobretudo pela voz de António Filipe, opôs-se desde o início e levou o assunto até ao TC, que agora lhe dá razão.
“Esta decisão do Tribunal Constitucional vem revelar que tínhamos razão ao suscitar o pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade e de termos alertado para o facto de a legislação que foi aprovada pelo PS, PSD e CDS, e cuja fiscalização não foi solicitada pelo Presidente da República, violava de forma flagrante a Constituição", reagiu o deputado.
António Filipe sublinha que a norma "deixa de vigorar automaticamente" e deixa de ser possível aos serviços de informação ter acesso a esse tipo de dados: "A lei tinha sido aprovada, foi promulgada pelo Presidente da República e estava em vigor, mas a decisão do Tribunal Constitucional é de declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, designadamente da norma que permitia acesso dos serviços de informação a dados de faturação detalhada das comunicações individuais".
Quatro anos depois, novo chumbo
Segundo PCP, BE e PEV, a lei viola o artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa, que determina que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal" e não ultrapassa os problemas levantados pelo Acórdão do TC n.º 403/2015.
O acórdão em causa do TC, de 27 de agosto de 2015, declarou inconstitucional o anterior diploma aprovado por PSD, PS e CDS-PP sobre esta matéria, por violação do artigo 34.º da Constituição, na sequência de um pedido de fiscalização preventiva do então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.
Nesta legislatura, PS, PSD e CDS-PP acordaram um novo diploma que permite ao SIS e ao SIED aceder aos chamados metadados "para efeitos de produção de informações necessárias à salvaguarda da defesa nacional, da segurança interna e da prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e criminalidade altamente organizada e no seu exclusivo âmbito".
PS, PSD e CDS-PP alegam ter contornado a inconstitucionalidade declarada pelo TC em 2015 com o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça no processo de autorização para solicitações de interceção de dados de comunicações e introduzindo também prazos mais céleres para autorização de acesso à informação, por exemplo.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, justificou a promulgação deste diploma, a 14 de agosto, "atendendo ao consenso jurídico atingido, tendo em vista ultrapassar as dúvidas que haviam fundamentado anteriores pedidos de fiscalização preventiva da constitucionalidade, e tendo presente a relevância do regime em causa para a defesa do Estado de direito democrático, e em particular para a proteção dos direitos fundamentais".
[Notícia atualizada às 16h00]