O Governo que classifica o problema da precariedade como “inaceitável” e “volta e meia anuncia números” é o mesmo Governo que alarga o período de experiência exigido aos trabalhadores à procura de primeiro emprego e que “recua em medidas como contratos para estafetas”. Os jovens continuam “à procura de formas de sobreviver e a olhar para o futuro com receio”, “não há quartos para conseguirem estudar”, mas “criamos condições para os nómadas digitais”. Tudo isto é “cínico” e “uma afronta enorme”.
O retrato é feito pelos convidados do Geração Z desta semana: Daniel Carapau, dirigente da Associação Precários Inflexíveis, e Beatriz Realinho, de 21 anos, que, apesar de ser formada em Ciência Política e Relações Internacionais, se vai “sujeitando às condições” e soma no currículo áreas como restauração, produção cultural e imprensa.
Natural da Guarda, mas em Lisboa desde 2018, Beatriz dá voz à “geração mais qualificada de sempre”, a mesma geração que quando termina a licenciatura vê o “futuro risonho” que tem pela frente: baixos salários, falsos recibos verdes, horários inflexíveis e “um problema enorme para esta geração”: a crise habitacional.
“Este foi o ano em que mais estudantes entraram no Ensino Superior e festejámos isso, mas depois um em cada dez desses estudantes acabaram por desistir de vir estudar para Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, para estas grandes cidades universitárias. Porquê? Por causa do preço da habitação. Não é possível suportar todas as despesas e a formação começa a ficar para segundo plano, especialmente agora com a crise que vivemos”, sublinha.
Daniel Carapau reconhece que “pode haver pontualmente algumas medidas positivas” inscritas no acordo de rendimentos e competitividade para a valorização dos salários e na Agenda do Trabalho Digno, mas acredita que muitas delas, como o aumento de 5% dos salários, os incentivos à contratação de jovens e o aumento do benefício anual do IRS Jovem, “não vão fazer a diferença”.
“É preciso que uma pessoa primeiro tenha um contrato de trabalho para depois estar a declarar IRS. E com o nível de salários que temos hoje, se a média dos jovens é menos de mil euros, então quem tem o seu primeiro trabalho é ainda menos e vai ficar isento de IRS. Quanto aos aumentos de 5%, quando a inflação está em 10, é fazer as contas. Os incentivos para as empresas, isso já se faz com os estágios, mas depois o que acontece é que na maior parte dos casos, as pessoas não ficam a trabalhar na empresa onde estagiaram”.
Numa altura em que a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, tem vindo a reconhecer que a situação de precariedade em Portugal é “inaceitável” com 62% dos jovens com contratos precários, mas, por outro lado, defende que a Agenda é "inovadora", Daniel Carapau acusa a ministra de cinismo.
“Temos os números que volta e meia a ministra do trabalho refere, mas ela já é governante há alguns anos e não se vê que tenha tomado medidas em relação ao assunto. Há um pouco de cinismo em quem refere ‘há esta percentagem toda de jovens precários’, mas ainda há três anos este governo alargou o período experimental para todas as pessoas que têm o seu primeiro emprego com trabalho sem termo, portanto podem estar seis meses à experiência e durante esses seis meses podem ser despedidos sem nenhuma intenção.”
O dirigente da Associação Precários Inflexíveis admite que há áreas que o preocupam. Em junho, e depois de dois anos de discussão, o governo recuou na intenção de vincular os estafetas e motoristas às próprias plataformas, como a Uber ou a Glovo. Mas há outros problemas de fundo para combater a precariedade em Portugal: a falta de fiscalização dos contratos precários.
“Não chega só o governo dizer que está a contratar mais inspetores do trabalho. Há já vários anos que não temos dados sobre o que está a ser feito pela Autoridade para as Condições do Trabalho, é essencial saber quantos casos há de falsos recibos verdes que são reportados, quantos desses são efetivamente resolvidos favoravelmente e se os tribunais estão a decidir corretamente, porque chegam-nos decisões que não têm sentido nenhum”.
Beatriz Realinho admite que já pensou em emigrar e critica um governo que está mais preocupado em “convidar nómadas digitais”, do que em criar condições para fixar os jovens portugueses.
“Não temos quartos para jovens conseguirem estudar fora de casa ou para aqueles que queiram sair de casa dos pais, mas depois criamos condições para que nómadas digitais consigam vir para o nosso país. A questão dos nómadas digitais é uma afronta enorme. Nós não saímos de forma voluntária, nós somos obrigados a sair de cá”, lamenta.