Orgulhosamente sós.
A frase tem reminiscências salazaristas em Portugal, mas ao fim de onze meses na presidência, Donald Trump tomou três decisões que colocam os Estados Unidos na posição de orgulhosamente sós em relação ao resto do mundo.
Primeiro foi a saída do Acordo de Paris sobre o clima, depois a saída do pacto sobre migrações e refugiados das Nações Unidas, agora o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e a mudança da embaixada americana de Telavive para a Cidade Santa.
Nestas três questões, os EUA passaram a estar isolados em relação ao resto do mundo. Uma circunstância que Trump gosta de cultivar, ele que se tem na conta de mais inteligente do que todos os outros.
No anúncio da última “originalidade”, esta quarta-feira em Washington, o que ficou patente foi que a decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel foi tomada sobretudo por razões de política interna.
Trump começou por lembrar que o Congresso aprovou por maioria, em 1995, a mudança da embaixada americana para Jerusalém, mas os três presidentes que entretanto governaram o país (Clinton, George W. Bush e Obama) a cada seis meses adiaram a concretização da decisão. E Obama tinha prometido o mesmo que Trump na campanha.
Não o fizeram por capricho, nem por calculismo político interno, nem por posicionamento partidário, já que dois eram democratas e um republicano. Fizeram-no porque perceberam que tal mudança minaria a posição dos EUA em relação a qualquer processo de paz e incentivaria os ódios na região. E um deles, Clinton, foi o que esteve mais próximo de estabelecer a paz entre israelitas e palestinianos com os acordos de Oslo, que só falharam no plano prático porque Yitzhak Rabin, então primeiro-ministro israelita, foi assassinado por um extremista judeu.
Na comunicação ao país, Trump insinuou que os seus antecessores não cumpriram a decisão do Congresso por falta de coragem política. Mas ele não sofre desse problema, ele cumpre aquilo que promete. E como na campanha eleitoral prometeu mudar a embaixada para Jerusalém, impunha-se cumprir a promessa.
Voto judaico e evangélico
Não disse, naturalmente, que na campanha tinha feito tal promessa para captar os votos de evangélicos e judeus. Os primeiros eram suficientemente numerosos para lhe garantir a vitória nas primárias sobre alguns dos adversários que estavam bem implantados nesse eleitorado. E foram igualmente muito úteis na eleição geral contra Hillary Clinton. Os segundos, não sendo tão numerosos, eram suficientemente influentes e prósperos para financiar a campanha. O mais famoso deles, Sheldon Adelson, o magnata dos casinos de Las Vegas e de Macau, contribuiu com 25 milhões de dólares.
São “generosidades” que ficam caras politicamente. Trump justificou-as agora com dois argumentos principais. Um é pragmático. Se Israel tem os seus órgãos de soberania a funcionar em Jerusalém, se as reuniões com responsáveis israelitas decorrem em Jerusalém, se como país soberano Israel escolheu Jerusalém como sua capital, porque não aceitar esse facto e reconhecer esse direito a Israel?
O outro é valorativo. A política seguida até aqui pelos EUA de não reconhecer Jerusalém como capital não trouxe a paz à região, é tempo de mudar, de ter outra abordagem e de apresentar essa mudança como uma nova esperança para a paz.
O argumento pragmático ignora a polémica histórica em relação ao estatuto da cidade. Desde que ocupou Jerusalém Oriental na Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel começou a construir colonatos na parte Leste da cidade para ir expulsando os palestinianos e outros árabes. É uma ocupação considerada ilegal em resoluções aprovadas nas Nações Unidas, que faz de Jerusalém um caso à parte em todo o complexo conflito israelo-palestiniano.
Um exemplo disso foi o que sucedeu nos Acordos de Oslo de 1993, promovidos por Clinton, aqueles em que se foi mais longe no entendimento entre israelitas e palestinianos. Mesmo aí o estatuto de Jerusalém ficou de fora porque não foi possível chegar a um consenso. A questão seria dirimida mais tarde, já no quadro de uma paz consolidada entre as duas partes que permitisse ter a cidade como capital de Israel (Jerusalém Ocidental) e da Palestina (Jerusalém Oriental) em simultâneo e em plena coexistência pacífica.
Actualmente, com a ocupação e gestão israelita da cidade, as fronteiras entre aquilo que pertenceria a um futuro estado palestiniano e a Israel está cada vez mais difícil de definir. Isto num quadro em que os lugares sagrados das três grandes religiões monoteístas desempenham também um papel importante. Por isso, reconhecer Jerusalém como capital de Israel é tomar partido pela potência ocupante da cidade, um passo que ninguém na comunidade internacional está disponível para dar.
E aqui entra o argumento valorativo — uma nova abordagem como esperança para a paz na região. Um argumento que suscita perplexidade, já que favorecer a parte mais forte de um conflito jamais poderá contribuir para um clima de confiança entre o mediador e a parte mais fraca. Nem “wishful thinking” se pode considerar, é um absoluto irrealismo, no qual nem Trump deve acreditar.
A sua administração já é vista pelos palestinianos (e não só) como a mais pró-israelita desde Harry Truman. A admiração que nutre pelo primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, um falcão que tem expandido os colonatos e que se opõe a qualquer acordo de paz, é só um dos sinais que minam a posição dos EUA na região e que os tornam um interlocutor suspeito para os palestinianos.
Sem ideias novas
Trump encarregou o seu genro, Jared Kushner, um judeu ortodoxo, de lançar um processo de paz no Médio Oriente. Kushner deslocou-se várias vezes à região e mantém contactos com vários governos locais, nomeadamente com os sauditas, mas ninguém conhece até hoje os contornos do seu plano. O “New York Times” adiantava esta quarta-feira que tinha sido apresentado ao líder palestiniano um plano “inaceitável” porque não só previa a manutenção de todos os colonatos israelitas nos territórios ocupados como nem sequer admitia Jerusalém Oriental como a sua capital. A Casa Branca, contudo, desmentiu que esse fosse o seu plano.
Trump deixou muito claro que os EUA mantêm a sua posição favorável à solução de dois estados a viver lado-a-lado e que a questão da definição de fronteiras, incluindo as fronteiras de Jerusalém, seria acertada entre as duas partes. Ou seja, reiterou a posição oficial de Washington que atravessou já várias administrações.
Sublinhou mais do que uma vez que a decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel não muda a posição dos EUA sobre o estatuto da cidade, nem significa o fim do compromisso americano com um processo de paz.
Ao fazê-lo, quis talvez apaziguar os ânimos que a decisão anunciada desencadeará no mundo árabe e na comunidade internacional. Mas, ao fazê-lo, também se contradisse, porque afinal não estamos perante nenhuma nova abordagem da questão. “Não há ideias novas aqui”, comentou na CNN Aaron David Miller, um grande especialista em Médio Oriente. Nem qualquer estratégia inovadora para o conflito israelo-palestiniano.
Trump limitou-se a mexer na parte simbólica de um assunto delicado. Fê-lo à revelia da sensatez, do consenso internacional, dos conselhos dos aliados, dos alertas dos governos da região e das advertências de muitos que integram a sua própria administração. Fê-lo ignorando o poder dos símbolos num caso como este e revelando a maior indiferença pelas eventuais consequências violentas do seu gesto.
O que o move não é a paz no Médio Oriente, para a qual não tem qualquer estratégia. Nem tão-pouco política externa. O que o move é a gestão comezinha dos interesses políticos internos, que vão desde a projecção da imagem de alguém que cumpre a palavra dada até à caça ao voto e ao financiamento das campanhas eleitorais. É essa a dimensão dos seus horizontes.