Lesados do BES que recorram à justiça vão ter que esperar
08-06-2016 - 23:10
 • Liliana Monteiro

Benjamim Barbosa, presidente do tribunal administrativo e tributário de Lisboa (TAF), lamenta que o tribunal trabalhe apenas com um terço dos juízes necessários e admite a incapacidade de fazer justiça em tempo útil.

Ficou prometida para este mês a apresentação de uma proposta que vai determinar os valores a restituir aos lesados do papel comercial do Grupo Espírito Santo. Os lesados que não fiquem satisfeitos com as propostas e decidam recorrer à justiça vão ter de esperar, diz à Renascença o presidente do Tribunal Administrativo e Tributário de Lisboa.

Benjamim Barbosa acredita que não vai receber uma enchente de novas acções e explica mesmo que estes possíveis novos casos, a serem admitidos, não vão ter resposta breve.

As acções ligadas à resolução do BES fizeram aumentar as pendências de processos neste tribunal, admite o juiz desembargador, que lamenta ainda a incapacidade de resposta por parte dos juízes, num quadro magro e desajustado de funcionários. Uma situação “constrangedora” e que resulta em acções que se “eternizam” à espera de decisão.

Qual é o estado de saúde destes tribunais?

Quer o Tribunal Administrativo quer o Tributário têm pendências bastante elevadas, tendo em conta a complexidade das matérias que têm de decidir. O número de processos no Tribunal Administrativo é de cerca de 7.500, no Tribunal Tributário andam à volta dos 13.500 processos.

São números elevados para os padrões da justiça administrativa e fiscal, uma vez que a maioria dos processos são de elevada complexidade. No Tribunal Administrativo há cerca de 500 processos por juiz, no Tributário há cerca de mil processos por juiz. É normal, por isso, que haja uma incapacidade de resposta perante a procura.

São casos que em muitas situações podem demorar anos a ficar resolvidos?
Sim. O panorama em termos de longevidade dos processos não é o melhor, gostaríamos que os processos fossem resolvidos em tempos mais razoáveis, mas tal não é possível com o actual quadro de juízes. É humanamente impossível exigir uma resposta mais célere. As acções eternizam-se aqui. No Tributário o prazo de resolução das questões fica muito além da lei, que prevê dois anos, o que contende com os direitos das pessoas. E os próprios juízes não estão satisfeitos.

Na justiça fiscal o que é que é mais difícil de concretizar?
Além da dificuldade de meios humanos, há também problemas decorrentes das frequentes alterações do quadro jurídico que condicionam a actividade dos juízes. Muitas vezes têm de consultar um, dois, três casos jurídicos distintos para tomar decisão em função das alterações.

O Estado português é muitas vezes condenado?
A nível administrativo as condenações são equilibradas, o mesmo não sucede no Tribunal Tributário. Nos últimos anos o Estado tem aumentado o ganho nas causas. Deve-se ao maior apetrechamento da Fazenda Pública, com mais juristas, mais preparados. O problema do Tribunal Administrativo é que há uma grande quantidade de processos urgentes relacionados com a contratação pública, complexos, que exigem decisões céleres. Para os juízes que aqui prestam funções o peso está nestes processos urgentes, o que faz com que os menos urgentes se eternizem.

Que fatia representam esses casos?
No Tributário os urgentes são diminutos. No Administrativo grande parte das acções são antecedidas de processos urgentes, providências cautelares, contencioso contratual… diria que não andam muito longe de 30 a 40% em relação aos processos totais.

As providências cautelares aumentaram. Há maior consciência de que elas existem? Não estarão a ser usadas como arma de combate político?
Não sinto isso. Acho que quem vem a tribunal vem exercer os seus direitos. O nosso sistema propicia que as pessoas recorram a tribunal para fazer valer os seus direitos. Não nego que em alguns casos possa existir subjacente essa intenção, é plausível.

Que disparidade existe entre os juízes que trabalham no terreno e o quadro previsto para estes tribunais?
Nós temos no Tribunal Administrativo um quadro de 24 juízes, neste momento estão a desempenhar funções 14 juízes. No Tribunal Tributário, o quadro é de 11 juízes e estão a desempenhar funções 15 juízes.

Há relativamente pouco tempo o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais fez uma proposta no sentido do alargamento destes quadros. Só para lhe dar uma ideia, 48 juízes para o Tribunal Administrativo e 32 para o Tribunal Tributário. Como vê, na realidade existe apenas um terço dos juízes que seria desejável.

Há processos aqui que têm implicações em processo criminal e que dizem respeito a situações onde se tenta apurar se há impostos em divida, ou não. E enquanto a questão não for resolvida no tribunal, o processo-crime não avança.

A troika determinou a criação de equipas especiais para processos acima de um milhão de euros. Que resultados teve esta medida? Foi uma boa medida?
A medida foi positiva e permitiu desbloquear alguns processos complexos. O problema que se colocou nestas equipas foi que a complexidade era tal que a produtividade das equipas não era muito expressiva. Um juiz tributário produz 20 sentenças por mês, nessas equipas conseguiam seis, sete sentenças por mês. As entradas foram sempre superiores aos processos resolvidos.

Foi deixada uma porta aberta para se poder voltar às equipas, a decisão cabe aos presidentes dos tribunais. No caso do Tributário de Lisboa, estou a ponderar voltar às equipas em Setembro. Mas se é certo que as equipas podem ajudar a resolver os processos de um milhão de euros, isso acarreta também influência negativa para processos inferiores, que também têm valores expressivos (de 500 mil a 900 mil euros) e acabam por não ter o mesmo tratamento dos outros processos.

Que processos grandes de um milhão de euros são esses?
No caso do Tributário a maioria dos casos tem a ver com liquidação de impostos. No caso do Administrativo temos um processo de valor muito superior a isso. Há, por exemplo, uma juíza que tem 1.400 milhões de euros num processo de contencioso administrativo relacionado com contratos de obras públicas, questões ligadas ao Banco Espírito Santo.

Estes problemas bancários que têm assolado a economia portuguesa reflectem-se nestes tribunais?

Sim, de algum modo, uma vez que todas as decisões do Banco de Portugal são sindicáveis no Tribunal Administrativo, é natural que as contestações cheguem até aqui. Esta é uma situação que causa bastante pressão no tribunal, tendo em conta que a esmagadora maioria das acções deste caso deram entrada aqui em Lisboa.


Em breve será conhecida a proposta de compensação aos lesados do papel comercial do Grupo Espírito Santo. Quem não concordar pode recorrer à justiça. Tem receio que aumentem este processos?
A primeira resolução do BES é de 2014 e já foi impugnada. Não sei até que ponto um eventual acordo que venha a ser celebrado implicará novas acções. Estou em crer que não. Também em relação à segunda resolução os prazos já se esgotaram. A acção tem de entrar três meses depois do acto lesivo, portanto esses prazos já se ultrapassaram, não acredito que daí surjam mais processos. Estou até esperançado que ocorra a situação inversa.


O facto de o BES ter acontecido no Verão de 2014 e de uma proposta de restituição aos lesados estar para surgir, não chegando estas pessoas a acordo, resta-lhes pouco na justiça para reivindicarem o valor por inteiro que pretendem?
Em primeiro lugar, terão de discutir se o acto que determinou a resolução do BES é legal, ou não, e só depois se pode avaliar se há direito a qualquer indemnização ou reparação dos interesses dos lesados. Até lá, enquanto o tribunal não se pronunciar sobre a legalidade da medida, será especular sem grande fundamento.


Há muitos crimes que se cruzam com os “offshores”. É possível contabilizar os processos destes tribunais que se cruzam com paraísos fiscais?
Em relação às “offshores” as situações que se debatem no Tribunal Tributário estão relacionadas com liquidações que são efectuadas em relação a pessoas e empresas que, por variados motivos, colocam os seus capitais em jurisdições com a dita tributação privilegiada. O problema é que também não há um número muito expressivo, não é possível partir dos dados que dispomos para afirmar que há uma evasão generalizada ao nível das “offshore”. O número de acções que temos relacionadas com isto no Tribunal Tributário é extremamente reduzido quando comparado com os processos que existem. Estamos a falar de meia dúzia de acções para um universo de 13.500 processos.


Quais são os maiores truques usados para a fraude e para a evasão fiscal?
É preciso desmistificar esta questão dos paraísos fiscais. Nem tudo o que está em territórios de tributação privilegiada é mau, há também aspectos positivos nisso. Temos o caso do centro de negócios da Madeira, que foi pensado para trazer vantagens à região e ao país, e não se pode tirar uma conclusão de que tudo o que existe nessa região é mau, é ilícito. Também convém referir outro aspecto: actividades ilícitas ao nível da tributação existem mesmo fora das zonas de tributação privilegiada. Ou seja, não é necessária a existência de paraísos fiscais para que as actividades ilícitas se desenvolvam.
O que nós notamos aqui no tribunal é que as questões que se relacionam com isso são questões que se repercutem em todos os sectores da sociedade, não há a preponderância de um sector, e tendem a ver sobretudo com a predisposição das pessoas e das empresas para pagar mais ou menos tributação.


Perante a crise houve muitas pessoas a recorrer à fuga e evasão fiscal?
Entendo este fenómeno como resultado também da própria carga contributiva que se abate sobre as pessoas e sobre as empresas. Há estudos internacionais que comprovam isso mesmo. Quanto maior é a carga contributiva, maior é a propensão para a fuga e evasão fiscal. Se a carga contributiva for aceitável, consensualmente admitida pelas pessoas, não me parece que haja vontade de se correr riscos desnecessários e sofrer sanções que podem agravar a situação da pessoa ou da empresa. O que se passa é que muitas vezes a carga fiscal eleva-se acima de patamares aceitáveis e começa a compensar o risco de reduzir a tributação por meios ilícitos.