Souto Moura diz que há mais do que 25 casos de abusos na Igreja Católica encaminhados para o MP
17-02-2023 - 07:05
 • Marina Pimentel

O magistrado, e antigo Procurador-geral da República, confessa, em declarações ao programa "Em Nome da Lei", da Renascença, não ter "grandes expectativas", uma vez que as vítimas podem não estar "propriamente interessadas" em participar nos processos judiciais.

Os 25 casos anunciados pela Comissão Independente são apenas uma parte das queixas de abuso sexual de crianças na Igreja Católica encaminhadas para o Ministério Público.

José Souto Moura, responsável da equipa de coordenação das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores, diz que recebeu até agora 32 denúncias, havendo uma parte de casos que ainda não prescreveu e foi também encaminhada para investigação criminal.

Será que o processo dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica corre o risco de se tornar um megaprocesso como o da Casa Pia, em que só a fase de julgamento demorou cinco anos e 8 meses?

Em declarações ao programa Em Nome da Lei, que é emitido aos sábados, ao meio-dia, na Renascença, Paulo Sá e Cunha diz não ver razão para que isso aconteça.

O advogado penalista, que foi defensor de um dos arguidos do processo Casa Pia, aponta não ver nenhuma razão para que se constitua um megaprocesso dos abusos sexuais contra crianças na Igreja. "Essa seria a pior solução, do meu ponto de vista", realça.

"Nós já sabemos que eles [megaprocessos] funcionam mal e, porventura, até nem haverá razão para se tratar de um megaprocesso, porque podem não existir razões que justifiquem uma conexão de processos e o seu tratamento num único processo, congregando vários arguidos e várias vítimas."

Neste capítulo, também o juiz desembargador Pedro Vaz Pato e José Souto Moura entendem que não há elementos de conexão entre os casos que justifiquem a junção de processo, não bastando que todos os alegados autores dos crimes sejam membros da Igreja Católica.

O antigo Procurador Geral da República confessa não ter "grandes expectativas" no resultado dos processo judiciais. Embora o abuso sexual de menores seja um crime público - e, portanto, a investigação avance mesmo sem queixa -, Souto Moura salienta que as vítimas podem não estar "propriamente interessadas" para se constituírem assistentes do processo.

"Acho que o que precisam é de serem acolhidas. Depende dos casos, e pode haver até situações em que precisem de acompanhamento psicológico, mas não é propriamente a vontade de punir quem quer que seja. É a vontade de serem ouvidas, acolhidas."

A Comissão Independente pediu celeridade do sistema de Justiça em relação aos 25 casos de abusos que comunicou ao Ministério Público. Paulo Sá e Cunha diz não haver razão para a resposta ser morosa.

"Urgência é a urgência que se quiser imprimir, porque se se criar uma equipa de procuradores dedicada a esta matéria, e com uma tarefa específica de investigar e de acusar estes crimes no mais curto prazo possível, estou convencido [de] que esse obstáculo não se porá."

O advogado explica que os crimes de abuso sexual, "ao contrário da criminalidade altamente organizada, económica e financeira" - que por vezes até "implicam recurso à cooperação judiciária internacional" -, são "mais fáceis de investigar".

"Embora também possam reclamar alguma prova pericial, desde logo as perícias de personalidade das próprias vítimas", acrescenta.

A prova neste tipo de casos, sobretudo quando já não há sinais físicos do crime, assenta praticamente só no testemunho da vítimas, mas poderá ser o suficiente para convencer o juiz da culpabilidade do abusador, sublinha Pedro Vaz Pato.

O desembargador, e membro do Tribunal Eclesiástico de Lisboa, dá o exemplo de um caso que julgou recentemente, em que a vítima, "uma rapariga", "falava com uma dificuldade tremenda da situação". "Quer dizer, vinham-lhe as lágrimas, era um choro convulsivo."

"Era evidente que aquela pessoa não estava a fazer teatro. Se aquilo fosse teatro, ela merecia um Óscar da Academia."

Os casos que já prescreveram para a lei criminal podem ainda ser julgados pelo Direito Canónico, uma vez que o prazo de prescrição para este tipo de crimes estende-se até aos 38 anos da vítima. O processo seria conduzido localmente, mas a "última palavra é sempre do Vaticano", explica Vaz Pato.

"Normalmente, até quando o processo não continua [judicialmente], porque a investigação não revela indícios suficientes, a última palavra é da Santa Sé."

O juiz desembargador revela que, nestes casos, existe "o perigo de que haja um favorecimento onde as pessoas se conhecem, [onde] os padres se conhecem todos uns aos outros". "E foi o que se verificou durante muitos anos."

O especialista em Direito Canónico não só admite que há mecanismos cautelares, que já foram aplicados - para evitar que padres suspeitos continuem no ativo -, como reconhece que estão previstas sanções para os bispos que não denunciem os casos de abuso de que tiveram conhecimento, quando esteja em causa um comportamento de negligência grosseira.

Limitar-se a transferir um padre de paróquia, pode ser um exemplo de negligência grave, perante a qual "está prevista a demissão do bispo", especialmente "se houver indícios de que há o perigo de continuação da atividade criminosa".

Sobre o alargamento do prazo de denúncia dos abusos sexuais de menores para os 30 anos da vítima, proposta pela Comissão Independente, os três convidados do Em Nome da Lei reconhecem a oportunidade da alteração legislativa.

O programa Em Nome da Lei, da jornalista Marina Pimentel, é transmitido aos sábados ao meio-dia, na Renascença, e está disponível nas habituais plataformas de podcasts.


Se foi vítima de abuso ou conhece quem possa ter sido, não está sozinho e há vários organismos de apoio às vítimas a que pode recorrer:

- Serviço de Escuta dos Jesuítas, um “espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus.

Telefone: 217 543 085 (2ª a 6ª, das 9h30 às 18h) | E-mail: escutar@jesuitas.pt | Morada: Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa

- Rede Care, projeto da APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que “apoia crianças e jovens vítimas de violência sexual de forma especializada, bem como as suas famílias e amigos/as”.

Com presença em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores.

Telefone: 22 550 29 57 | Linha gratuita de Apoio à Vítima: 116 006 | E-mail: care@apav.pt

- Comissões Diocesanas para a Protecção de Menores. São 21 e foram criadas pela Conferência Episcopal Portuguesa.

São constituídas por especialistas de várias áreas, recolhem denúncias e dão “orientações no campo da prevenção de abusos”.

Podem ser contactadas por telefone, correio ou email.

Para apoiar organizações católicas que trabalham com crianças:

- Projeto Cuidar, do CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica

Se pretende partilhar o seu caso com a Renascença, pode contactar-nos de forma sigilosa, através do email: partilha@rr.pt