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Entre as filas de campas no cemitério adjacente ao memorial de guerra em Stepanakert, capital de Nagorno Karabakh, há uma lápide que se distingue das restantes. O bloco de mármore encabeça apenas uma campa, mas são três os nomes que estão inscritos: Kamo, Shamo e Gahgik, filhos de Arshavir Sargsyan. Todos mortos na mesma batalha contra o Azerbaijão, na aldeia de Maragha, em 1992.
O dia é 2 de Setembro e o cemitério está cheio de arménios de Karabakh que vieram prestar homenagem às vítimas da guerra, no dia em que se cumprem 25 anos da declaração de uma independência que não é reconhecida por qualquer outro Estado.
Nagorno Karabakh tem apenas 300 mil habitantes e o Azerbaijão tem oito milhões. O número de católicos a viver nos dois territórios não chega ao milhar, mas ainda assim o Papa Francisco já disse que pretende falar do conflito durante a sua visita a Baku, capital azeri, no dia 2 de Outubro. Esta visita segue-se a outra feita à Arménia em Junho, em que o tema também foi abordado.
Apesar de a maioria da população ser arménia, Stalin decidiu integrar Nagorno Karabakh na recém-criada República do Azerbaijão, nos primórdios da União Soviética. No final da década de 80, recorrendo às leis em vigor, os karabakhis organizaram um referendo e pediram a integração na República da Arménia. Mas Moscovo negou, reprimindo violentamente os protestos que se seguiram.
Dois anos mais tarde, perante o colapso do país, novo referendo optou desta vez pela independência. O Azerbaijão não gostou e atacou, mas as forças karabakhis repeliram o ataque, consolidaram as fronteiras e conseguiram mesmo abrir um corredor até à Arménia, que é crucial para a sua sobrevivência.
Anos volvidos, as trincheiras permanecem e a ameaça de conflito está constantemente no ar. Os arménios, tanto na Arménia como em Karabakh, dizem que não têm qualquer interesse em reacender a guerra, mas que estão preparados se ela voltar.
O ministro dos Negócios Estrangeiros de Karabakh, Karen Mirzoyan, mostra-se agradecido pelas intenções do Papa. “Apreciamos muito os esforços do Papa Francisco para trazer a paz não só para Karabakh mas para toda esta região turbulenta”, diz à Renascença.
Outros, contudo, são mais cépticos, como é o caso de um alto responsável do Governo da Arménia, que pediu para não ser identificado. “Se alguém pode mediar este conflito é o Papa, mas temo que os azeris não estejam abertos ao que ele tem para dizer”, afirma.
Também o professor universitário e especialista em relações internacionais Felipe Pathé Duarte, que viajou para a Arménia na mesma delegação da Renascença, sublinha a dificuldade da missão de Francisco. “Há uma possibilidade aqui de um reduzir das tensões, mas ao mesmo tempo, não obstante a esperança, para um azeri o Papa será sempre visto como agente de uma lógica cristã que está a tentar influir em destinos eventualmente identitários islâmicos. Por isso não sei até que ponto o Papa Francisco poderá ser interpretado como neutro por um azeri que tem uma identidade turcomana e islâmica.”
Primeiro país cristão
Os arménios da Arménia e de Karabakh consideram-se um só povo. Quando a Renascença visitou Stepanakert, várias personalidades explicaram que, embora as gerações mais velhas prefiram a ideia de integração na Arménia, os mais novos preferem a independência.
Em Eravan, capital da Arménia, insiste-se que não há qualquer vontade de integrar Karabakh e que serão os seus cidadãos a decidir o seu futuro. A Arménia apoia o território como pode, mas ainda não reconheceu a independência porque é uma das partes envolvidas nas negociações de paz e prefere não tomar uma decisão unilateral que possa desestabilizar o processo.
Os arménios com quem nos cruzamos não se cansam de recordar que o seu país foi o primeiro a adoptar o cristianismo como religião de Estado, no ano 301, antes de o Império Romano dar sequer liberdade de culto aos cristãos. Apesar de décadas sob o jugo soviético, as igrejas em Eravan estão abertas todos os dias e há uma boa presença de fiéis, mesmo sem ser nas horas de culto. As kachkar – belíssimos cruzeiros esculpidos com desenhos tradicionais arménios – pontuam o território, assinalando não só as Igrejas como vários outros edifícios.
À porta da Igreja de São João encontramos Narine. A jovem diz-nos que tanto os pais como os avós são nominalmente cristãos, mas que ela é a primeira da sua família a regressar à prática religiosa. Há muitos outros como ela, garante, que estão a redescobrir a fé. Já Helen, que trabalha numa loja de queijos na vizinhança, confessa que não tem muito tempo para religião, embora respeite a Igreja Apostólica da Arménia, à qual pertencem a esmagadora maioria dos cristãos do país.
Onde as duas raparigas, sensivelmente da mesma idade, concordam, porém, é em relação a Nagorno Karabakh. É território arménio, tem de ser defendido. Se o genocídio de que foram alvo os arménios às mãos dos otomanos, há precisamente 100 anos, os ensinou alguma coisa, é que não podem deixar a sua segurança nas mãos de mais ninguém.
Em todas as conversas com arménios, seja em Eravan ou em Stepanakert, o tema do genocídio vem à baila em conjunto com o conflito com os azeris. Claramente, para eles os problemas não podem ser separados, tanto que os azeris se consideram da mesma etnia que os turcos. Olhando para a discrepância de forças entre as duas partes em conflito percebe-se bem que a guerra com o Azerbaijão era um segundo genocídio anunciado, que quase por milagre se transformou numa vitória militar.
Já o Azerbaijão é um caso peculiar no que diz respeito à religião. O país é muçulmano, da mesma confissão xiita que o Irão, com quem faz fronteira. Mas esse facto não serviu para colocar Baku sob influência de Teerão. Pelo contrário, o Irão tem boas relações com a Arménia enquanto os azeris são apoiados sobretudo pela Turquia, que é de maioria sunita.
Em Karabakh explicam ainda que por influência turca e dos países do Golfo Pérsico o número de sunitas está a aumentar e algumas centenas de azeris combatem nas fileiras do Estado Islâmico, na Síria e no Iraque.
Mesquita de pé, mas vazia
À primeira vista, portanto, e sobretudo nos arredores de uma região onde abundam os conflitos inter-religiosos, Karabakh teria tudo para ser mais uma “guerra santa”, com cristãos de um lado e muçulmanos do outro. Curiosamente, porém, nenhum dos arménios com quem falamos, tanto em Erevan como em Karabakh, se mostra interessado em jogar a carta religiosa.
“Não se trata de uma guerra religiosa, é uma questão de direitos humanos básicos”, insiste Pargev Martirosyan, o primaz da Igreja Apostólica Arménia em Karabakh. “Stalin ofereceu cinco províncias arménias ao Azerbaijão. Porquê? Nós queremos ser arménios”, conclui.
A caminho das trincheiras que actualmente formam a fronteira entre o território de Karabakh e o Azerbaijão, passa-se pela região de Aghdam. A cidade do mesmo nome era um grande centro urbano, com população mista, mas está reduzida a quilómetros de ruínas. Apenas um edifício se mantém de pé, razoavelmente bem preservado. Trata-se da mesquita, com os seus dois minaretes. “Este edifício está sob a protecção do Governo de Nagorno Karabakh”, diz-nos o guia, como prova de tolerância religiosa do seu Estado.
Mas mesmo que Aghdam e a mesquita fossem restauradas, os azeris há muito que partiram destas partes. Na altura da guerra alguns chefes de aldeias conseguiram chegar a acordo entre si e trocaram voluntariamente de populações, comprometendo-se a cuidar das campas dos antepassados dos seus antigos vizinhos. Noutros casos a deslocação foi forçada.
O problema atingiu o Azerbaijão e também à República da Arménia. Em Erevan a única mesquita azul, um belo edifício coberto de azulejos, serve hoje algumas centenas de iranianos e é conhecida também como mesquita persa. Nada dá a entender ao turista incauto que em tempos quem aqui vinha rezar eram os azeris, mas o dentista iraniano com quem conversamos nos claustros insiste que nunca ninguém o incomodou por ser muçulmano desde que foi viver para a Arménia.
“Somos as nossas montanhas”
A falta de uma tensão religiosa no conflito poderá ser benéfica para a missão de paz de Francisco, até porque a Arménia, sendo cristã, não é de maioria católica. Mas ainda assim o trabalho não será nada simples.
Segundo fontes governamentais arménias, os azeris têm-se estado a colocar novamente em pé de guerra, comprando armas a Israel, que tem todo o interesse em exercer influência num estado vizinho do Irão. Acusam ainda a Turquia de estar a espicaçar os azeris a retomar o território e uma tentativa de fazer isso mesmo resultou em novos confrontos e dezenas de mortos em Abril. Numa ditadura o conflito latente é sempre um bom instrumento para desviar as atenções dos problemas internos.
Mas os arménios não aceitam outra alternativa que não seja a independência face ao Azerbaijão e não tencionam partir da região. Nos arredores de Stepanakert existe um monumento curioso: dois bustos gigantes, de um casal, estão plantados no topo de um monte. Chama-se “nós somos as nossas montanhas” e, segundo o nosso guia, “o corpo está debaixo do chão para mostrar que a terra faz parte da identidade dos arménios. São inseparáveis.”
Durante um almoço em Stepanakert perguntamos ao ministro dos Negócios Estrangeiros se o seu Governo reivindica as aldeias, entre as quais Maragha, que ficaram nas mãos do Azerbaijão depois do conflito. “É evidente que sim!”, responde, de imediato. Mas tendo em conta que nessas aldeias já não vivem arménios, não estariam dispostos a abdicar deles para alcançar um acordo de paz? Aqui a resposta do ministro muda de tom. “Somos um povo de comerciantes. E se há uma coisa que os comerciantes sabem é que não se diz aquilo que estamos dispostos a ceder antes de saber aquilo que podemos ganhar”.
Se Francisco conseguir tocar na mesma veia comerciante dos azeris, mostrando-lhes que com a continuidade do conflito todos perdem, talvez a sua missão não seja tão impossível como parece à primeira vista.
A Renascença viajou a convite da organização Center for Politics and Foreign Affairs