Os jovens artistas e a fé. "Mundo católico tem de valorizar as artes de maneira mais séria"
07-07-2023 - 16:00
 • Ângela Roque

Como se manifestam artisticamente os jovens de hoje? Há preconceito cultural em relação aos artistas católicos? A fé condiciona, ou há espaço e liberdade para todos? O escritor Simão Lucas Pires, a pintora Mafalda Oliveira Martins e o cantor Salvador Seixas falam da relação entre arte e fé, numa conversa que conta ainda com a participação breve do músico João Só.

A fé católica é assumida na vida artística, ou há pudor? João Só garante que ter as suas convicções religiosas nunca foi um problema. “Das melhores conversas que tive foi com ateus, na estrada, com a minha equipa, e é sempre muito profundo mostrar o nosso lado”, conta.

O músico, que por compromissos profissionais não pôde participar neste episódio, partilhou por mensagem a sua experiência no meio musical, onde muitos não acreditam em Deus. E garante: “a fé não me condiciona, porque não me prende, mas está muito presente e de forma muito natural na minha vida”.

“Gosto muito de rezar a cantar”

Salvador Seixas tem 32 anos. Cantor e compositor, ficou conhecido dos portugueses no programa ‘The Voice’, em 2012. Desde aí já fez músicas com os DAMA, com Mia Rose, e é uma das vozes do hino da JMJ Lisboa. Tal como João Só, nunca sentiu que ser católico fosse um problema. Diz que acreditar em Deus alimenta a inspiração.

“Somos uns privilegiados! A fé é um fio condutor, é esperança, é um gatilho e uma gasolina. E todas as canções que possamos escrever têm sempre a base da experiência da nossa vida”, sublinha.

No último ano Salvador editou três singles. Um deles, já em 2023, ‘Foi por Ti’, é dedicado ao pai - ao da terra e ao do céu – e à família. Porque a vivência da fé está sempre presente, mesmo que às vezes seja de forma subtil.

Eu gosto muito de rezar a cantar, pegar na viola e cantar, e veio-me à cabeça o refrão do padre Tovar de Lemos, ‘foi por ti que um dia fui além da praia’, e senti este triângulo, o pai lá de cima e os meus pais cá de baixo… a música parece ser só uma canção virada para a família, mas no fundo este triângulo está subtilmente escrito, e também é assumido, porque toda a gente que está no meio católico conhece o que escreve o padre Nuno”.

Também concorda com João Só quando diz que há boas conversas com quem pensa diferente e pode não ter fé. “Sempre que há abertura fala-se. Há conversas muito profundas e há pessoas que nos dão bofetadas de luva branca. É muito enriquecedor e partilham-se histórias fantásticas”.

“A arte contemporânea grita espiritualidade”

Mafalda de Oliveira Martins, de 29 anos, é artista visual, formada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Em 2019 criou a associação ‘Pousio – Arte e Cultura’, que promove projetos artísticos com comunidades em contexto de isolamento social. Diz que não falta profundidade e espiritualidade na arte de hoje.

“Longe estão os tempos da literalidade na cultura e na arte, principalmente na expressão artística. Ainda existe a arte sacra, que tem uma função muito particular, de representatividade, de ir buscar temas à Sagrada Escritura e à vida dos Santos, para comunicar de forma muito clara e explícita a fé cristã. Mas, no contexto da arte contemporânea, não só nas artes visuais, os artistas vivem no mundo, é normal que adotem a linguagem do mundo, os seus símbolos e temas para falar de coisas que os movem interiormente, como a fé. É isso que me tenho deparado nestes anos a trabalhar com outros artistas, mas também no meu próprio trabalho, não apenas escolher a literalidade, porque o objetivo também é que este Deus que eu acredito, esta verdade, seja o mais acessível possível a todos”.

Mafalda diz que a arte contemporânea “grita espiritualidade”, mas há um conflito. "Num pólo completamente oposto – e este é um exercício meu de observação, não estou a generalizar toda a arte dos dias de hoje - há um tema, ou uma forma de estar muito recorrente, que é o coolness, que para mim acaba por afastar a arte até do seu próprio potencial. Porque a arte que é cool é uma arte que não se deixa afetar por nada, que se mantém calma, que se mantém OK, apesar de tudo aquilo que acontece à sua volta. Porque tudo pode ser relativizado”.

No fundo, diz, “é a incapacidade da arte e dos artistas se deixarem realmente tocar pelas coisas que os constrangem, pelas coisas que os preocupam, ou até pelas coisas belas”.

Mas, hoje, é fácil ser uma artista católica e falar disso? “Se não fosse fácil teríamos um problema! Era o que faltava. É muito natural que exista essa liberdade de poder falar das coisas com amor”.

E a fé é tema de conversa entre os artistas? Admite que esse é sempre “um desafio”, mas há outros, como o que o Papa lançou no recente encontro com artistas, na Capela Sistina, para que não esqueçam os pobres. Mafalda sente-se interpelada por esse pedido.

“A arte pode estar associada, muitas vezes, a círculos de pessoas com mais poder económico. O que me move, fruto da minha educação, é olhar para as injustiças sociais. Tenho pais juristas, que sempre olharam para o mundo dessa forma, ir à procura de injustiças e tentar resolvê-las. Isso acaba por mover muito a forma como olho para o mundo, e principalmente é a fé aqui a tomar ação sobre esta observação do mundo”. Foi por isso que em 2019 criou a ‘Pousio'.

“Falta no mundo católico, pelo menos em Portugal, valorizar as artes”

Simão Lucas Pires tem 33 anos. Formado em Filosofia, dá aulas num colégio de Lisboa. Cronista do jornal Observador, estreou-se este ano na literatura com o livro de contos “A Trombeta Vaga”, onde são várias as referências bíblicas.

“A Ideia de trombeta é a da revelação de alguma coisa importante e, neste caso, o que acontece em todas as histórias é que há uma revelação". Mas, a influência da Bíblia vai para além do título. "Dos oito ou nove contos que o livro tem, há pelo menos três contos relacionados com temas bíblicos”.

“Nesse sentido partilho o que o Salvador dizia, de os artistas católicos, de alguma maneira, terem uma espécie de manancial, um património cultural que também é inspirador e ajuda a criar a partir daí”.

Como escritor não se sente discriminado por ser assumir a sua fé, mesmo que haja algumas pessoas que “olham um bocadinho de lado e com desconfiança para tudo o que é católico. Mas calma, não estamos a ser propriamente bombardeados ou perseguidos, como muitos cristãos hoje em dia ainda são em várias partes do mundo!”, sublinha.

“Não gosto muito dessa coisa de vitimização, dizer ‘agora as pessoas não gostam de nós’. Claro que é notório e todos já experimentámos, de alguma maneira, um certo olhar sobranceiro por parte de algumas pessoas relativamente à religião, ou à ideia de que pode haver artistas ou cultura boa vinda desse obscurantismo religioso", mas "não acho que isso seja dominante , nem esmagador para ninguém, hoje em dia!”.

Simão não considera que a cultura de hoje seja monotemática, mas admite que é muitas vezes “de causas”, o que “é um empobrecimento da própria arte e também do discurso político. Tem a ver com filtrar toda a realidade em nome de uma causa, como se tudo tivesse a ver com isso. É pouco lúcido”.

E não esconde a indignação em relação à corrente que, nomeadamente da literatura, tenta reescrever livros. “Quem é que tem o direito de mexer numa coisa que foi criada por outro? Se quiser escreva um novo livro baseado nesse, se não gosta não edite, se não gosta não compre, se não gosta não venda, mas deixe estar como foi feito”.

“Já não é a pretensão de julgar a história com olhos do presente, é já um passo à frente disso, que é reescrever literalmente a história, alterando os pontos, as vírgulas e os adjetivos de que não se gosta nessa história! Isso parece-me, para além de todos os outros problemas, de uma pretensão diabólica!”.

“É censura! É uma retirada de liberdade e um desmancho autoral”, acrescenta Mafalda Oliveira Martins, que lembra que “se a arte for puramente um serviço a uma causa, deixa de ser arte e passa a ser comunicação. Existe um caráter de liberdade que é absolutamente necessário na expressão da arte”.

Como professor de filosofia, Simão manifesta grande esperança nas novas gerações, mas lembra a responsabilidade da escola, e da própria Igreja, na educação cultural dos jovens. “Eu acho que falta no mundo católico, pelo menos em Portugal, valorizar as artes de uma maneira mais séria”.

Salvador Seixas concorda, recordando que o contacto que teve com a música não foi curricular. “Tive oportunidade fora da escola, extra curricular, e em convívio com amigos”.

Mafalda - que também toca, e que este ano se estreou na literatura infantil, com o livro 'Conta Bem que o Sono Vem', que também ilustrou - lembra que “todos somos fruto das nossas circunstâncias, e há quem de facto tenha circunstâncias mais privilegiadas. Eu sei que tive, por ter dois lados da família que têm muito gosto pela cultura, que cantam muito. Se não havia uma proposta direta escolar sobre música, eu tinha música. Da parte da literatura também”.

Considera urgente os professores de artes serem valorizados, porque “não existem outras disciplinas sem arte, a arte é transversal a tudo”. E é também preciso que os artistas saiam da “bolha” em que estão, para que a cultura chegue a todos, porque “quem vive em grandes cidades não tem esta noção, mas temos um Portugal muito desertificado e comunidades muito, muito isoladas a nível social e a nível cultural”.

É preciso “tirar os artistas dos ateliês, dos centros das cidades e tirar as pessoas que estão isoladas dos sofás de casa. É para isso que a Pousio foi criada”, sublinha.

Se tivessem oportunidade, que pergunta fariam ao Papa?

Para João Só “é difícil escolher uma coisa. Acho que perguntava o que é que ele acha que o ajuda diariamente a procurar a Santidade? Qual é a sua muleta mais infalível para segui este caminho?”.

Mafalda Oliveira Martins diz que faria um pedido “atrevido”, mas fundamental. “Acho que a única coisa que conseguiria dizer era pedir-lhe para rezar por mim”.

Salvador optaria por “uma coisa mais mundana. Devem fazer-lhe tantas perguntas, tão profundas, que acho que perguntaria qual e o seu prato ou restaurante preferido”.

Simão diz que também “pouparia o Papa a muitas perguntas ou explicações teológicas”, mas agradeceria o último texto que Francisco escreveu. "É uma carta apostólica sobre Pascal, que é um autor muito importante para mim, mesmo no meu encontro com Cristo. E agradeceria não só por isso – porque ajuda a explicar como é que uma vida dedicada à cultura pode ser uma vida Santa -, mas por outra razão: hoje há dentro da Igreja muitos conflitos, e achei muito bonito um Papa, que é jesuíta, ter falado em termos tão elogiosos de uma pessoa que andou toda a sua vida às turras com os jesuítas, no século XVII. Acho que é um testemunho desta capacidade de ver o que é que é importante na vida de fé. E diria obrigada por este texto”.