Primeiro obstáculo superado: Bruxelas, apesar das reservas, não devolveu o esboço do Orçamento do Estado para 2016. “A Comissão vai reanalisar o cumprimento de obrigações”, lê-se no documento após a reunião do Colégio de Comissários. O tema está em destaque no programa “Conversas Cruzadas” da Renascença.
Os próximos embates serão tensos. Dois momentos a seguir com máxima atenção: as previsões de primavera da Comissão Europeia e o programa de estabilidade a apresentar em Abril por Lisboa. Na altura, tendo como pano de fundo os indicadores económicos do início do ano, o programa terá já de desenhar linhas do OE 2017.
No “Conversas Cruzadas”, Silva Peneda resume esta equação de difícil resolução, pelo menos, à luz do que se conhece da proposta de Orçamento do Estado para 2016.
“O problema complicado aqui é saber como se respeita os dois equilíbrios: os compromissos europeus e os internos, o de resolver tudo já. Não só os salários e as pensões. Lembro os feriados, lembro o IVA da restauração, apareceram outros pontos não previstos e, portanto, entrou em cena esta ideia da ausência de gradualismo na aplicação das medidas”, afirma o adjunto do presidente da Comissão Europeia.
Mas até novo embate com Bruxelas e até à votação final do OE a 16 de Março há ainda uma tarefa difícil pela frente do ministro Mário Centeno. Apesar de não comprometerem a luz verde, bloquistas e comunistas reafirmam continuar a trabalhar para que a versão final corresponda a “outras expectativas e ambições”, na expressão usada pelo PCP.
Álvaro Santos Almeida admite que até 16 de Março se registem os primeiros episódios de tensão entre o governo e a sua base de apoio à esquerda, mas defende que os momentos de maior impacto se irão viver no Verão com o “inevitável Orçamento rectificativo”.
Álvaro Almeida. “Orçamento Rectificativo vai ser inevitável”
“O momento de aprovação do Orçamento vai ser tenso. O OE será aprovado – acho – mas vai criar problemas políticos na coligação”, diz o professor de economia da Universidade do Porto.
“Há um segundo momento logo a seguir em Abril/Maio em que há lugar a duas avaliações chave. A da agência de ‘rating’ DBRS, a única que ainda atribui um grau acima de lixo à dívida pública portuguesa, e a da Comissão Europeia da decisão agora tomada. São avaliações a poder levar à necessidade de um orçamento rectificativo com mais medidas de austeridade. Aí teremos mais um momento de tensão política”, admite Álvaro Santos Almeida.
“Depois, por altura do Verão, ou logo a seguir, virá o momento crítico que é quando o orçamento rectificativo for mesmo inevitável. E é inevitável porquê? Porque a despesa vai estar muito acima do que está previsto. Não tenho dúvida nenhuma quanto a isso”, assegura. “Como vai estar muito acima do previsto o orçamento rectificativo implica a tomada de medidas adicionais. Esse será o momento decisivo”, garante Álvaro Santos Almeida.
Já Silva Peneda não antecipa efeitos significativos da execução orçamental no ciclo político, pelo menos, até ao Outono. “Acho que não haverá grandes surpresas até ao Orçamento para 2017. Mesmo com todos os problemas do PCP, etc. O PC não vai querer ficar com a responsabilidade de entregar o poder à direita. É um ponto importante. Uma ruptura provocada rapidamente significava isso”, indica o economista.
“Agora, se a ruptura for provocada pelo próprio PS será diferente. Na altura em que as sondagens forem muito simpáticas e António Costa sentir que pode chegar à maioria. Mas vamos ter oposição e a oposição também vai trabalhar. Não vai ser um passeio assim tão fácil para o PS”, alerta Silva Peneda.
“Vamos ter várias vicissitudes, mas o ponto crítico, a grande dificuldade vai ser como é que no orçamento para 2017 se consegue manter o equilíbrio entre os compromissos europeus e os compromissos internos com os partidos à esquerda do PS. Esse é um exercício muito difícil de fazer”, reafirma o antigo presidente do Conselho Económico e Social.
Mas não poderá o PS liderar a marcação do calendário do ciclo político?
Álvaro Santos Almeida discorda e antecipa um Bloco de Esquerda em alta eleitoral. “Seria admitir que o resto do mundo não existe, só existe Antonio Costa. Nesse quadro há uma questão particular: é que as medidas simpáticas, como o próprio reconhece, resultaram dos acordos feitos com o Bloco de Esquerda que pode, depois, reivindicar a paternidade dessas decisões simpáticas”, afirma.
“Portanto, quem vai estar em alta, nessa altura, vai ser o Bloco de Esquerda a poder dizer: ‘Fomos nós a reintroduzir os feriados, a aumentar os salários, descongelar as pensões. Já quanto a esta história do aumento dos impostos indirectos, foi o governo, não fomos nós’.
Não ficaria surpreendido se, nas próximas eleições, o Bloco e o PS lutassem taco a taco, os dois, na casa dos 20%”, diz Álvaro Santos Almeida.
Silva Peneda não vai tão longe. “Não sou capaz de fazer esse tipo de futurologia, porque há tantas variáveis. Em política um período de seis meses é uma eternidade”, diz o adjunto de Jean Claude Juncker, preocupado com o ritmo de introdução de novas medidas e alertando para os inerentes riscos.
Silva Peneda. “Apelo a quem decide: visão gradativa sempre”
“Não sou médico, mas preferia continuar a adoptar aquela imagem de que Portugal não saiu ainda dos cuidados intensivos. O paciente está melhor, recuperou, mas precisa ainda de ser diagnosticado com calma. O conjunto de medidas agora tomadas de forma abrupta implica riscos”, diz o antigo ministro.
“Não é uma questão de estar de acordo ou não. Se calhar estou de acordo, mas estas decisões deviam ser tomadas apenas na certeza de que não haveria efeitos negativos. Portanto, vamos lá com calma para que o doente se possa levantar e gozar de plena saúde”, afirma.
“Cada vez mais insisto neste ponto e se há um apelo que posso fazer a quem decide a política económica é: adoptar sempre uma visão gradativa. Um pé à frente e outro atrás. Só quando o pé à frente estiver bem firme se dará o outro passo. Julgo que se estão a dar passos muito rápidos e não vejo estudos sustentando a solidez desses passos. Não queria ver retrocessos”, nota Silva Peneda.
“O CES alertou e bem. Este problema da política económica é sempre complicado: quando se dão passos muito rápidos, retroceder implica dor e sérios prejuízos. Por exemplo, enquadro a questão das 35 horas neste alerta”, prossegue.
“Por exemplo, eu também não mexeria no IVA. Não sei se o impacto nas receitas vale a pena. Sou capaz de aceitar a reposição dos salários e das pensões, mas aí teria uma visão gradativa. Depois há determinado tipo de decisões que me merecem reservas”, prossegue.
“A alteração do ISP, nos combustíveis vai anular um pouco o efeito dos salários. Apertadas na parte dos custos da energia as empresas vão ter de acomodar os efeitos. O aumento dos custos da energia terá custos negativos para a economia e para a competitividade das empresas. Estou a falar destes remendos de última hora”, indica Silva Peneda.
“Também não vejo a necessidade de resolver de imediato esta questão dos feriados. Tinha de ser já? Já se calculou o efeito nas empresas exportadoras de calçado e têxteis (50 milhões/dia, se a meio da semana). São factores a aumentar o risco”, conclui.
Quem venceu o braço-de-ferro? Lisboa ou Bruxelas?
Mas terá o governo ganho a primeira batalha na discussão com Bruxelas? Manuela Ferreira Leite defende que António Costa venceu o braço-de-ferro. Para a antiga líder do PSD, “o governo deve ter querido demonstrar que não se conforma com tudo”, e que por isso “em termos formais e políticos ganhou”, uma vez que “não tendo abdicado das medidas” que garantem o apoio de BE,PCP e PEV conseguiu “um resultado com cedências de parte a parte”.
Álvaro Santos Almeida afirma tratar-se de uma análise muito questionável. “Essa leitura é totalmente incompreensível. Não sei como é que o governo possa ter ganho quando o que aconteceu foi o que os analistas previam. Confrontado com a necessidade de não ter o défice agravado o governo ia ter de tomar medidas adicionais”, afirma.
“Tanto quanto sabemos são 845 milhões em impostos. O previsto. Para não abdicar do acordo à esquerda teria de aumentar impostos. Não há aqui qualquer vitória do governo. A não ser que se considere vitória adoptar uma política que vai comprometer a competitividade das empresas e colocar em causa o crescimento económico”, diz Álvaro Santos Almeida num registo irónico.
“O próprio governo já admite que o crescimento será menor que a sua previsão inicial. Mais: não há uma aprovação clara por parte de Bruxelas. Há uma aprovação com reservas. Ponto dois: a aprovação condicionada tem implícita a necessidade de medidas adicionais, sobretudo se o início na execução orçamental não correr como o previsto”, resume Álvaro Santos Almeida o comunicado da reunião do Colégio de Comissários.
“Congelar despesas com salários a subir e 35 horas?”
“Há um aspecto fundamental e que não tem sido discutido: estamos todos a assumir que não há qualquer problema do lado da despesa, quando o que estava no esboço original - e tanto quando sabemos não foi alterado – era um congelamento da despesa. Um congelamento ao mesmo tempo que os salários aumentam e que se adopta as 35 horas”, diz Álvaro Santos Almeida.
“Ou seja, uma vez que as instituições públicas vão ter de acomodar o aumento salarial e as consequências de menos horas de trabalho vamos ter um corte na despesa da maior parte da administração pública, em particular, na saúde e na educação”, alerta o professor da Universidade do Porto.
“Se tínhamos um governo anterior acusado de insensibilidade social por ter feito os chamados cortes cegos e criminosos – ouvi até um ministro deste governo dizer que morriam pessoas por causa dos cortes – e agora vem este governo e corta em cima de cortes? Então vão morrer mais pessoas?”.
“Foi o ministro da Saúde a dizer que os cortes cegos matavam e, a seguir, ele próprio, impôs cortes adicionais. Em cima dos cortes que supostamente tinham levado à morte de pessoas vão impor mais cortes? Não percebo. A menos que descubram, mas até agora ainda não o anunciaram, medidas que consigam aumentar radicalmente a eficiência, não vejo como seja possível”, afirma Álvaro Santos Almeida.
De regresso ao braço de ferro com Bruxelas, Silva Peneda defende não haver vencedores nem vencidos: há, isso sim, responsabilidades, desafios e riscos... e uma saudação.
“Quanto a esta ideia de vitória, julgo que este acordo foi bom. Foi muito bom para o país. O pior era este documento vir devolvido de Bruxelas, o país entraria numa instabilidade muito grande, logo apareceriam as agências de “rating” e, enfim, seria o caos”, diz o adjunto de Juncker.
“Apesar dos percalços, o governo tem de ter uma saudação porque conseguiu um entendimento com a União Europeia”, admite Silva Peneda.
“Agora, as consequências deste entendimento terão de ser analisadas noutro plano. E aí são muitas as variáveis. Vivemos num mundo em que não estamos sozinhos”.