O tiro saiu-lhe pela culatra. É este aforismo popular que vem à mente quando se pensa no desfecho da crise política provocada por Donald Trump com o despedimento do director do FBI na semana passada.
Ao demitir James Comey num acto prepotente que apanhou toda a gente de surpresa — os mandatos do director do FBI são de dez anos para garantir a independência do cargo e evitar que os presidentes possam “livrar-se” deles a seu bel-prazer — Trump visava acabar com a investigação em curso sobre as ligações entre a sua campanha eleitoral e a Rússia. Ou pelo menos colocá-la sob responsabilidade de alguém mais “compreensivo” que acabasse por esvaziar o inquérito de substância acusatória, tornando-o inócuo.
Foi, aliás, o próprio Trump que o confessou numa entrevista televisiva dois dias depois de ter demitido Comey. Disse que estava a pensar na questão das ligações da sua campanha à Rússia quando afastou o director do FBI, até porque na sua opinião essa ligação é “uma história inventada”. Recorde-se que o FBI já deu como provada a interferência da Rússia na campanha eleitoral com o objectivo de favorecer Trump e prejudicar Hillary Clinton. O que agora investiga são eventuais cumplicidades de responsáveis da campanha com Moscovo nessa actividade ilícita.
Uma averiguação que muito incomoda o novo presidente, que já em Fevereiro tinha tentado convencer James Comey a deixar cair o caso numa conversa a sós na Sala Oval, como se soube esta semana.
Mas agora, mesmo que porventura o próximo director do FBI seja alguém mais “sensível” aos argumentos de Trump, o presidente já não se livra de uma investigação extensa e aprofundada. O Departamento de Justiça acabou de nomear um procurador especial para investigar o caso, numa atitude que vem demonstrar que o sistema político americano de pesos e contrapesos continua a funcionar.
Procurador prestigiado e independente
Quando Comey foi demitido houve quem defendesse a nomeação de um procurador especial para o caso, justamente para evitar pressões e interferências da Casa Branca no inquérito. Mas foram sobretudo vozes da oposição democrática que o fizeram.
O Departamento de Justiça veio agora dar-lhes razão, escolhendo para liderar a investigação um antigo director do FBI com grande prestígio profissional. Robert Mueller tomou posse como director da agência uma semana antes do 11 de Setembro e manteve-se no cargo até 2013, atravessando os dois mandatos de George W. Bush e o primeiro mandato de Obama.
É considerado apartidário e a sua reputação como causídico e acusador público é grande. Foi escolhido para várias missões de investigação e acusação pública quer por administrações republicanas, quer democratas. Tem fama de ser muito competente nas investigações em que se envolve, não descurando os mínimos pormenores e perseguindo o objectivo até à exaustão.
A sua escolha para “special counsel” (acusador/advogado especial) é uma garantia de que a interferência da Rússia na campanha presidencial do ano passado e o eventual conluio entre agentes russos e membros da equipa de Trump será investigada até às últimas consequências, de acordo com a generalidade dos comentadores e analistas americanos.
Não só pela personalidade, experiência e reputação de Robert Mueller, mas também porque a figura de procurador especial traz consigo garantias de total independência no exercício do cargo. Mueller não dependerá de nenhuma entidade, nem sequer do Departamento de Justiça. Trabalhará com total autonomia, como é habitual nestes cargos nomeados para uma missão específica. Formará a equipa de investigação que entender, recrutando juristas e outros especialistas para trabalharem com ele a tempo inteiro. Terá ainda o orçamento que exigir e não está obrigado a cumprir quaisquer prazos obrigatórios para apresentar as suas conclusões. Os seus poderes serão os de um procurador/acusador público. Isto é, todas as pessoas que ele chamar a depor são obrigadas a fazê-lo, tendo poderes para elaborar acusações criminais e enviar para tribunal quem entender.
Não tem obrigação de prestar contas à opinião pública nem de investigar eventuais falhas éticas ou comportamentos políticos censuráveis. O seu foco será na área criminal, devendo por isso prosseguir os inquéritos em curso no âmbito do Congresso e que visam apurar responsabilidades políticas.
Ou seja, se no âmbito do FBI ainda se poderia suspeitar de pressões ou cumplicidades com a Casa Branca se for escolhido um director “simpático” para o presidente, no caso do procurador especial essa suspeita não tem cabimento. Robert Mueller tem uma posição invulnerável a pressões e será o único responsável pelo trabalho da sua equipa. Nas suas mãos fica agora o destino da investigação a um eventual conluio entre a Rússia e membros da campanha de Trump no ano passado.
Como se verifica, para o presidente a situação é mais incómoda do que era antes. Com o objectivo confesso de parar a investigação, Trump afastou Comey, mas agora acaba com um investigador em dedicação exclusiva e com melhores condições para levar a cabo a sua tarefa. Talvez por isso, a sua reacção foi de desagrado. “Isto é a maior caça à bruxas de um político na história americana”, escreveu no Twitter.
Escolhido pela administração
O irónico nesta observação é que a escolha e nomeação de Robert Mueller foi da responsabilidade do procurador-geral adjunto, Rod Rosenstein, o número dois do Departamento de Justiça, recém-nomeado para o cargo pela administração Trump.
Rosenstein é considerado um jurista prestigiado e apartidário, mas a sua primeira tarefa relevante no novo cargo foi redigir um dossier muito crítico da actuação de James Comey como director do FBI. Foi com base nesse dossier que os assessores de Trump fizeram crer que o presidente tinha agido para afastar Comey. O argumento usado foi que Trump tinha aceite a sugestão do Departamento de Justiça para demitir Comey por má condução do processo dos emails de Hillary Clinton. A “entourage” de Trump, incluindo o vice-presidente Mike Pence, garantiu então à opinião pública que o presidente não tinha afastado Comey por causa do inquérito à Rússia.
Foi uma mentira que durou dois dias, mais exactamente até ao momento em que o próprio Trump confessou que a questão da Rússia esteve na base do afastamento de Comey e que até já tinha decidido demiti-lo mesmo antes da recomendação do Departamento de Justiça.
Em todo o caso, o dossier crítico sobre Comey manchou a reputação de Rosenstein como jurista independente. Segundo o “Washington Post”, ele próprio ficou incomodado com o argumento usado pela “entourage” de Trump sobre o facto de o seu dossier ter estado na origem do despedimento de Comey. E terá ameaçado demitir-se. Agora, com a nomeação do procurador especial, restaura a sua reputação de jurista independente.
Dezoito contactos
A missão de Robert Mueller será, obviamente, espinhosa. A agência Reuters revelou esta quinta-feira que só nos últimos sete meses da campanha eleitoral houve 18 contactos entre agentes russos e elementos da campanha de Trump. Atendendo a que não tem prazos para cumprir, a investigação pode prolongar-se indefinidamente no tempo sem que se conheçam quaisquer resultados palpáveis. Esse poderá ser um motivo de frustração na opinião pública, por um lado, e um motivo de inquietação na administração, por outro. Durante os próximos tempos — talvez anos — pairará sobre esta administração o espectro de uma investigação criminal que poderá até conduzir ao “impeachment” do próprio presidente. Foi o que sucedeu durante as administrações Clinton com o caso Whitewater, Reagan com o caso Irão-Contras e Nixon com o caso Watergate.
Não é fardo pequeno para quem ocupa a Casa Branca.