O Governo não pode voltar a decretar a obrigatoriedade do teletrabalho ou do uso de máscara para controlar a disseminação da Covid-19, defendem os juristas ouvidos pelo programa da Em Nome da Lei, da Renascença. Todas as medidas que constituam uma restrição de direitos, liberdades e garantias exigem aprovação parlamentar, sublinham.
O bastonário da Ordem dos Advogados, Menezes Leitão, sublinha que “a matéria laboral é da competência do Parlamento. E até obriga a ouvir representantes dos trabalhadores e das entidades patronais”.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa defende que, “mesmo que estivéssemos sob o estado de emergência, o que diz a Constituição é que não pode ser alterada a repartição de competências entre os órgãos de soberania. Isso está lá dito expressamente”, sublinha, para concluir que “as regras laborais não podem ser alteradas por decreto governamental”.
Vitalino Canas partilha da opinião. Para este antigo deputado socialista, doutorado em Direito, “a obrigação do teletrabalho constitui uma limitação quer do Direito ao Trabalho quer da liberdade de iniciativa económica privada e, portanto, só pode ser introduzida através de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo autorizado pelo Parlamento. Mas, para isso, é preciso que o Parlamento não esteja dissolvido”, porque a Comissão Permanente não tem poderes legislativos.
Na mesma linha, o deputado do PCP e constitucionalista António Filipe lembra que “o Parlamento acaba de aprovar as novas regras do teletrabalho e, portanto, não faz qualquer sentido suspender agora todas as condições que foram estabelecidas”.
Também o regresso do uso obrigatório de máscara em espaços abertos é uma medida que “só o Parlamento pode aprovar”, na opinião de Paulo Otero: “é exigida a lei parlamentar, lembra o constitucionalista.
“Todavia, a prática dos últimos meses tem sido o Governo, ao abrigo da situação de calamidade, prevista na Lei de Bases da Proteção Civil, a adotar medidas que a ordem jurídica verdadeiramente não o habilita a fazer”, acrescenta.
Uma vez que Assembleia da República deve ser dissolvida a partir da próxima sexta-feira, Paulo Otero admite que “o Parlamento poderia ainda aprovar uma lei impondo a obrigação do usa da máscara, condicionando a sua aplicação de uma decisão administrativa”.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa lembra que nas situações anteriores, quer o primeiro-ministro quer o Presidente da República, começaram também por dizer que não se justificava o estado de emergência para mais tarde virem a defender que fosse decretado”. Admite, por isso, que o cenário se irá voltar a colocar. E, nesse quadro, defende que “a Comissão Permanente tem poderes para autorizar o Presidente da República a declarar o estado de exceção”.
Estado de exceção? Especialistas dividem-se
Não tem de ser o plenário a aprovar o estado de exceção? Paulo Otero responde que, na sua perspetiva, “a Constituição apenas exige a convocação o mais rápido possível do plenário no pressuposto de que a Assembleia da República não esteja dissolvida. Ora, estando dissolvida, não há a obrigatoriedade de ela se reunir, sem prejuízo de o Presidente da República a poder convocar extraordinariamente”.
O bastonário da Ordem dos Advogados tem outra interpretação. Defende que “tem de ser o plenário a aprovar a declaração de estado de emergência.” Admite, no entanto, que o Presidente da Repúblico pode convocá-lo de forma extraordinária para o aprovar”.
Menezes Leitão diz que a convocação do estado de emergência é cada vez mais provável e até desejável, face ao agravamento da pandemia.
“Prefiro que haja restrições aos direitos, liberdade e garantias com o estado de emergência decretado do que do que estarmos a viver permanentemente numa situação de exceção, considerando-se que isto é normal em termos constitucionais.”, defende Menezes Leitão.
O bastonário critica o Parlamento pelo facto de, ao longo dos meses que tem durado a pandemia, ter deixado o Governo aprovar medidas, entrando dentro daquilo que são as suas competências.
Governo em roda livre?
Às críticas de que o Parlamento se autodemitiu das suas competências de legislador, deixando o Governo em roda livre em matéria de combate à pandemia, o deputado comunista António Filipe responde que “os portugueses aceitaram de forma pacífica as medidas anti-Covid, mesmo as mais restritivas, o que levou a que o consenso fosse mais fácil no parlamento”.
Lembra, no entanto, que “houve divergências, nomeadamente quando esteve em causa a aprovação do estado de emergência”. O deputado comunista, que faz parte da Comissão Permanente que ficará em funções quando a Assembleia for dissolvida, não concorda que estejam reunidas as condições para que o estado de emergência seja de novo decretado.
“A situação não é suficientemente grave”, diz. “Não é comparável com o que tínhamos há um ano”. António Filipe vê impossibilidades práticas e teóricas para a aprovação de um novo estado de emergência.
“Um dos problemas é saber se uma Assembleia dissolvida pode convocar-se a si própria”, argumenta, “mas não é só isso – é preciso ver que a lei do estado de emergência prevê um acompanhamento permanente da Assembleia da República, no mínimo quinzenal, e receber relatórios e discuti-los. Ou seja, implica ter comissões parlamentares a funcionar. E isto num estado de dissolução, em que os partidos andam em campanha eleitoral, acho uma solução muito pouco curial”.
Na mesma linha, Vitalino Canas defende que, “se a Constituição não permite a dissolução sob a vigência do estado de emergência, também não pode permitir que seja declarado o estado de emergência, estando o parlamento dissolvido”.
O antigo assessor do Tribunal Constitucional defende que a Comissão Permanente que ficará em funções não pode convocar um plenário dissolvido. E defende “uma alteração relâmpago na Lei de bases da Proteção Civil para dar mais poderes ao Governo para tomar medidas de controlo da pandemia”.
Nesse contexto, “o Presidente da República devia adiar a dissolução e a convocação de eleições”, defende.
Menezes Leitão considera este cenário “absurdo” e “só descredibilizaria os órgãos de soberania”. Também António Filipe acha “impensável “mexer no calendário anunciado pelo Presidente da República.
E, com ironia, lembra que “se alguém teve pressa foi quem anunciou previamente a dissolução da Assembleia da República, se o Orçamento do Estado fosse chumbado”.
O deputado constitucionalista sugere ao Governo que opte “por fazer mais recomendações e menos imposições”, porque “a tolerância dos portugueses pode não ser a mesma de há um ano e meio”.
São declarações ao programa de informação da Em Nome da Lei, transmitido todos os sábados na Renascença, logo a seguir ao meio-dia.