A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) já está entre nós. Costumo andar de comboio, por isso posso confirmar que o pessoal de bandeiras nacionais atadas ao pescoço tipo-super-homem anda por aí, um pouco por todo o lado, e desta vez não vem para a bola: de Braga ao Entroncamento, é contá-los. O Papa é que ainda não chegou, mas aguardo com curiosidade que palavras trará consigo, sobretudo por causa de alguma catequese que tem feito, especificamente sobre a relação entre novos e velhos.
O dia de Santa Ana e São Joaquim, convencionado como “Dia dos Avós”, celebrado no passado domingo, dia 23 de Julho, trouxe-o de novo à superfície e, aqui no burgo, forçados que fomos a engolir a agenda mortífera da eutanásia, o tema ressoa sempre com mais intensidade: “Sem as raízes, como poderiam as árvores crescer e dar fruto?”, ou “Os grandes desafios sociais e os processos de pacificação não podem prescindir do diálogo entre os guardiões da memória – os idosos – e aqueles que fazem avançar a história – os jovens”, são frases do Papa retiradas dessa extensa instrução a que se dedicou entre Janeiro e Agosto do ano passado.
Mas, para não variar, o ruído do mundo tem sido mais que muito, e em vez da reflexão promovida pelos meios de comunicação social ser sobre o que deveria interessar, é sempre mais acerca do que pode gerar uma reacção rápida, de preferência apaixonada, invariavelmente sintetizada numa parangona superficial. A maior parte da conversa pública sobre o acontecimento tem sido não sobre a possibilidade de salvação das almas que a Jornada pode promover ou, numa perspectiva não confessional, na centralidade mediática internacional que o evento trará para Portugal, por exemplo, mas sobre o financiamento, a hipocrisia da Igreja e outros lugares-comuns.
Acompanhem-me no raciocínio: o facto de nunca termos integrado plenamente a gruta como símbolo do Natal, pelo menos ao mesmo nível do resto da iconografia da época, teve a ver, creio, com a dificuldade em reconhecer naquele lugar uma nova dimensão existencial.
“Cristo não tinha nascido apenas ao nível do mundo, tinha nascido abaixo do nível do mundo”, diz-nos Chesterton no “Homem Eterno”. O primeiro acto do “drama divino” apresenta-se logo como desadequado, mais do que ao padrão de plausibilidade do homem daquele tempo, à sua cosmogonia interior. O projecto Divino encarnado numa criança, por exemplo, ainda longe da facilidade com que hoje nos relacionamos com a mitologia do misticismo infantil (“Peter Pan”, “Winnie the Pooh”, ou até mesmo “Calvin and Hobbes”), para o homem do tempo de Jesus era um absurdo tão grande como considerar “um girino superior a um sapo”.
Parece-me que estamos a assistir a um fenómeno parecido, só que ao contrário. Para uma certa mentalidade pagã dos dias de hoje, o problema não é existir valor no pequeno e frágil, é, muitas vezes, descobri-lo no grandioso. Explico-me: é como se tivéssemos vulgarizado essa, em tempos, alucinante invenção do Cristianismo, de no pouco (ou nada) encontramos o muito, e o brilhante paradoxo fosse agora apenas um desmaiado lugar comum, corrompido na adoração que fazemos à simplicidade e ao poucochinho em si mesmos, como se, depois de termos descoberto em Jesus o nosso Rei e Salvador, não nos sentíssemos obrigados a erguer as maiores e mais belas catedrais ou a venerá-Lo da maneira mais perfeita, deixando-O assim refém de uma espécie de boa consciência moderna. Quando este discurso é da Igreja somos capazes de ouvir o slogan “Igreja pobre”, quando é do mundo são as críticas de hipocrisia e tal e tal e tal.
Não me confundam, é possível encontrar em expressões litúrgicas rudimentares ou em capelas despojadas, mais que um sentido de eterno, o próprio Cristo, claro. Mas sejamos razoáveis: assim que as perseguições acabaram, os primeiros cristãos abraçaram imediatamente a construção das maiores e mais belas catedrais e desenvolveram o que de melhor puderam para louvar o seu Senhor. Para quê continuar a oferecer pão seco ao seu Rei que se fazia presente na Eucaristia, quando podiam agora servir cabrito assado? Mais: para quê perder tempo em explicações a quem não está interessado na verdade, mas no instante mediático?
Ouvimos e lemos queixas gratuitas sobre os investimentos e os dinheiros da Jornada, a palavra “laico” cuspida a torto e a direito. Suspeito, no entanto, que isso seja um fenómeno maioritariamente urbano, onde, entre os que não têm com que se ocupar, o ofício de “activista” floresce, ou artistas que se têm dedicado a tornar Lisboa uma cidade mais feia nos últimos anos aproveitam literalmente o palco para se promoverem, não garantissem os 708 mil euros que, desde 2018, só em contractos por ajuste directo com entidades públicas, têm recebido, plataforma suficiente para se fazerem ver e ouvir. É que não me recordo de ter ouvido as mesmas coisas (talvez o problema seja do meu viés católico, que me colocará mais sensível ao que se passa agora) noutros grandes eventos de culto religioso ocorridos no nosso país, como a Webb Summit ou o Euro 2004: os mesmos inconvenientes para os lisboetas, o mesmo fervor devoto reservado apenas a alguns iluminados, os mesmos orçamentos milionários.
A diferença é que, como diria Santo Agostinho, se nuns se procuram prazeres, grandezas e verdades para encontrar dor, confusão e erro, no caso da Jornada Mundial da Juventude a verdadeira alegria, a grandeza que nos arranca da nossa própria mediocridade e a única Verdade, estarão presentes; certamente, um pouco por todo o lado, sobretudo em todas as Missas que forem celebradas.
Há até, admito, quem se possa sentir arrastado para uma festa da qual não quer participar. Eu próprio algumas vezes manifestei algumas reservas aqui e ali: a confusão de gente, mensagens desconcertantes das autoridades eclesiásticas, a cedência ao novo gnosticismo ambientalista que pretende incutir sentimentos de culpa pelo facto de os peregrinos virem para Lisboa de avião, em vez de louvar um caminho sacrificial para o encontro com Cristo, ou pontos de acolhimento que promovem a divisão do povo de Deus em tribos, como se não fôssemos um só.
Mas penitencio-me: como disse um Pároco sábio que conheço, “[o que está em causa com a Jornada Mundial da Juventude não se trata] de termos, mais ou menos, simpatia por este ou aquele modo de fazer as coisas na Igreja, mas, isso sim, de termos sentido de pertença: somos “para além” das nossas sensibilidades. Somos o “Corpo de Cristo” que quer estar presente na cidade (...), dispormo-nos a incómodos (uma das muitas traduções da caridade...) para oferecermos hospitalidade, desejando que a Igreja mostre na cidade a alegre e segura presença nela do seu Senhor, Cristo Salvador.”