A Via Sacra do Papa através das grades. “A prisão continua a sepultar homens vivos”
08-04-2020 - 20:36
 • Aura Miguel

As meditações da Via Sacra desta sexta-feira Santa foram escritas “através das grades”. Catorze pessoas aceitaram o convite do Papa e meditaram na Paixão de Cristo, à luz da realidade das prisões.

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A situação de emergência Covid-19 obrigou o Papa a transferir a tradicional Via Sacra do Coliseu de Roma, para o Adro da Basílica de São Pedro. Francisco não vai ter a presença física de fiéis, mas terá a envolvê-lo a especial companhia de quem sofre, na prisão, os passos da Paixão e morte de Cristo. Nesta sexta-feira Santa, os leitores do site da Renascença também poderão seguir a Via Sacra em direto, bem como todas as outras principais celebrações da Páscoa.

Os catorze textos, propostos pela capelania da prisão de Pádua “Due Palazzi”, foram escritos por pessoas muitos diversas, todas elas marcadas pelo sofrimento ligado à vida de quem está preso. Além do contributo de cinco detidos, a Via Sacra do Papa também conta com a colaboração de uma família vítima de homicídio, da filha de um condenado a prisão perpétua, de uma educadora prisional, de um juiz, da mãe de um detido, de uma catequista, de um frade voluntário, de um polícia prisional e de um padre injustamente acusado e mais tarde absolvido.

"Encontrei na prisão a confiança perdida”

“Sou mais parecido com Barrabás do que com Cristo, e todavia a condenação mais feroz continua a ser a da minha consciência”, desabafa um condenado, juntamente com o pai, a prisão perpétua.

Outro detido confessa que arrastou a família para o precipício: ”por minha causa, perderam o seu apelido, a boa reputação; tornaram-se apenas a família do assassino. Não procuro desculpas nem atenuantes; expiarei a minha pena até ao seu último dia, porque na prisão encontrei pessoas que me devolveram a confiança perdida”.

Numa das meditações, um outro prisioneiro, que entretanto foi avô, reconhece: "Na prisão, o verdadeiro desespero é sentir que já nada da tua vida tem sentido: é o ápice do sofrimento, sentes-te a pessoa mais sozinha de todos os solitários no mundo. É verdade que fiquei desfeito em mil pedaços, mas o belo é que estes pedaços ainda se podem, todos, recompor.”

Uma catequista que visita a prisão confessa que o caminho que Cristo lhe sugere “é contemplar sem medo aqueles rostos desfigurados pelo sofrimento. É-me pedido para ficar ali, ao pé, respeitando os seus silêncios, ouvir a dor, procurando olhar para além dos preconceitos, tal como Cristo fixa, com olhos cheios de amor, as nossas fragilidades e as nossas limitações”.

O sofrimento do lado de cá das grades

Uns pais, cuja filha foi assassinada, reconhecem que “o tempo não aliviou o peso da cruz, que nos colocaram aos ombros: não conseguimos esquecer que ela hoje já não está entre nós. Estamos envelhecidos, cada vez mais indefesos, e somos vítimas da pior dor que existe: sobreviver à morte duma filha.”

Numa outra meditação, a filha de um pai condenado a prisão perpétua desabafa: “Há uns anos atrás, perdi o amor, porque sou filha dum homem preso, a minha mãe caiu vítima de depressão, a família desabou. Fiquei eu, com o meu pequeno salário, a suportar o peso desta história, em frangalhos. A vida forçou-me a ser mulher, sem me deixar tempo de ser menina.”

“No lugar deles, poderia estar eu”

Um sacerdote injustamente condenado e mais tarde absolvido, recorda o pesadelo dos seus anos de prisão: “A vergonha levou-me, por um momento, a pensar que seria melhor acabar com a vida. Depois, porém, decidi continuar a ser o padre que sempre fui.” Mas a força da amizade e da oração levaram a melhor. Muitos dos seus amigos rezaram com ele pelo rapaz que o acusou “e nunca deixaremos de o fazer”, comenta o sacerdote. “No dia em que fui plenamente absolvido, descobri que era mais feliz do que dez anos antes. Toquei com a minha mão, a acção de Deus na minha vida. Pregado na cruz, o meu sacerdócio iluminou-se.”

E um frade missionário que acompanha os encarcerados da prisão de Pádua testemunha: “Passando de uma cela a outra, vejo a morte que vive lá dentro. A prisão continua a sepultar homens vivos: são histórias, de que ninguém mais quer saber. A mim, Cristo continua a repetir-me: «Continua, não pares. Pega neles ao colo».”