Uma palmada ou uma bofetada são, com alguma frequência, respostas corretivo-educativas usadas pelos pais a um mau comportamento dos filhos. A isto, o Instituto de Apoio à Criança (IAC) chama “castigos corporais” – “um tipo de castigo que, percebemos nós pelos dados que nos chegam, ainda é tolerado pela sociedade”, diz à Renascença o jurista Nuno Domingues.
“Eu pergunto: se um adulto quiser bater num adulto, ele pode? Se um professor quiser bater no aluno, pode? A resposta é sempre não, não pode. E a pergunta que fica é: então porque é que isto é admissível na família?”, questiona.
O Instituto de Apoio à Criança (IAC) quer, por isso, contribuir “para um mundo melhor”. “Queremos ter uma sociedade que respeite a dignidade da criança e julgamos que a melhor prática é retirar a violência dos relacionamentos”, defende Nuno Domingues, um dos coordenadores da campanha “Nem mais uma palmada!”
“Não aceitamos de forma alguma que se tolere uma educação com violência, mesmo moderada ou com fim educativo”, afirma, baseando a sua posição em vários estudos nacionais e internacionais, segundo os quais “mesmo aquela palmada com fim pedagógico, a médio/longo prazo, traz prejuízo para a saúde física e mental da criança”.
Todos eles “revelam que bater nas crianças tem efeitos negativos, não apenas para a criança como para a comunidade em geral”. Em Portugal, o mais recente estudo foi desenvolvido pelo Instituto Superior de Saúde Pública do Porto e liderado pelo professor Henrique Barros. “Fez um estudo longitudinal com mais de 5.300 crianças, em que estiveram a avaliar o impacto deste tipo de práticas na saúde da criança”, revela Nuno Domingues.
De acordo com esta investigação, que acompanhou milhares de crianças desde o nascimento, cerca de 75% dos menores com sete anos de idade são vítimas de agressão psicológica e de castigos corporais (como a bofetada e a palmada no rabo), o que pode causar problemas de saúde a longo prazo.
Tal foi possível verificar com a análise ao sangue das crianças (tendo em conta, nomeadamente, o valor da proteína C-reativa, que indica o nível inflamatório do organismo): as crianças que vivem formas de disciplina parental mais violenta no seu quotidiano “vivem numa situação de tempestade inflamatória que lhes vai causar doença na vida adulta”, afirmou Henrique Barros ao “Jornal de Notícias” por altura da divulgação do estudo.
Estas crianças poderão desenvolver doenças cardiovasculares, metabólicas e hipertensão, entre outras, mais facilmente. Além disso, das crianças de sete anos que sofrem castigos corporais, 58% apresentam valores de inflamação elevados, quase o dobro das que não são vítimas desse tipo de castigos.
Conter é a palavra-chave
Está no supermercado e o seu filho vê algo que quer. Mas não lhe vai comprar e ele começa a reagir. À medida que vê que não atinge o objetivo, usa as armas que tem e começa a gritar e a fazer birra. O que fazer?
“Num primeiro momento, conter. Às vezes, com um abraço”, diz Nuno Domingues. É importante que os pais consigam colocar-se à altura dos olhos da criança e a faça conter aquele comportamento.
“O pai e a mãe são muito mais fortes do que qualquer criança. Conseguimos contê-los, não os magoando, mas conter aquele momento de descontrolo. De seguida, às vezes um abraço ou uma palavra para perceber o que se passa”, indica o jurista do IAC.
Com esta atitude, colocamo-nos “ao lado deles” e tentamos “que aquele momento passe”.
“Imaginar que aquela criança está ali completamente descontrolada e que vai parar porque eu acrescento mais uma bofetada não faz sentido”, defende o mesmo responsável, para quem usar violência “não ajuda em nada. O primeiro passo a tomar é mesmo conter a situação.
E depois? O IAC avança várias estratégias que considera importantes:
- Definir regras e limites
- Ser consistente e contingente (“não podemos ter um comportamento desadequado nem permitir que o comportamento desadequado se repita sem a devida chamada de atenção, por isso devemos ser muito consistentes nisto”)
- Dar sempre o exemplo (“que é uma coisa que falta muito” e “é um dos tópicos mais importantes”)
- Envolver a criança na solução daquela situação
- Redirigir o comportamento (por exemplo, direcioná-la para outra atividade)
- Elogiar no que fez bem
- Negociar as consequências (quando há um comportamento indevido, o que é que a criança espera que eu faça? O que achas que o pai agora devia fazer, tendo em conta o que fizeste? Haver uma linha de diálogo para os envolver).
O seguimento destas práticas “tem de ser consistente”, diz o jurista do IAC. “Não é fácil”, reconhece, nem “há uma cartilha que garanta que o resultado vá ser sempre ótimo. Mas o que importa é o caminho”.
“Devemos procurar este caminho alternativo à punição e aos castigos corporais. Isso é evidente e não pode haver dúvidas em relação à escolha a fazer”, reforça, nestas declarações à Renascença.
Porque batemos?
“Nós batemos porque podemos; porque, além da vantagem da força física, temos um ascendente sobre os filhos e temos esta desculpa. Só batemos porque podemos, porque somos mais fortes. No fundo, o problema está em nós”, afirma o coordenador da campanha “Nem mais uma palmada!”
Na opinião de Nuno Domingues, acabar com a violência no seio da família, mesmo que com intuitos educativos, “é uma questão civilizacional óbvia: não bato nos meus filhos, como não bato em ninguém”.
A campanha “Nem mais uma palmada!” foi lançada no dia 22 de fevereiro com o objetivo de trazer a questão dos castigos corporais a debate na sociedade portuguesa. Surge “no decurso de um apelo da sociedade civil – em concreto um movimento encabeçado por um casal, a Leonor Bragança e o seu marido Tiago, que contactaram o IAC no início deste ano”, depois de “confrontados com a experiência de verem, no espaço público, vários episódios de agressão de progenitores aos seus filhos”.
Para debater o tema, vai decorrer na Fundação Champalimaud, no dia 1 de junho, Dia da Criança, um evento promovido pelo IAC e com o alto patrocínio do Presidente da República, no qual vão participar vários oradores, entre os quais a Prof. Manuela Veríssimo, que vai falar sobre o estudo que está a desenvolver.