As reações ao livro ‘Identidade e Família’ têm sido tristemente emblemáticas.
Não se trata de aplaudir ou criticar o conteúdo – é tão legítimo elogiar como criticar, até pela diversidade de autores e de ideias ali expostas.
Será absolutamente normal, aliás, que se goste muito mais de alguns artigos que integram aquele livro e muito menos de outros.
Porém, muitas das críticas ao livro são mesmo censórias, ao jeito do lápis azul, pelo simples facto de um conjunto de pessoas terem decidido escrevê-lo. Como se atreveram a agitar as águas?
Quem defenda o direito à vida ou tenha dúvidas sobre todas as condições em que se pode recorrer ao aborto tem sido desclassificado, nos últimos dias, como só podendo ser de extrema-direita, perfeitamente reacionário e, necessariamente, ultraconservador.
E o mesmo se aplica a quem se oponha à eutanásia ou sobre ela manifeste dúvidas fundadas.
Quem entenda o casamento como instituto próprio da união entre uma mulher e um homem - sem prejuízo da garantia dos direitos legais de todos os outros tipos de uniões – esses, então, são olhados com desprezível desdém, reservado ao mais refinado dos retrógrados.
Em certos debates televisivos, entre autores e críticos do livro ‘Identidade e Família’, alguns jornalistas desistiram mesmo de pensar e não tiveram a preocupação do contraditório, exercido através de perguntas óbvias a fazer aos críticos do livro.
Vi jornalistas televisivos a gerirem debates - com perguntas ou silêncios - em função de convicções pessoais. Nem mesmo se incomodaram quando tais críticos punham em causa a ousadia de um grupo de pessoas - que outros articulistas já classificaram de ‘beatos grisalhos’ – ter tido a ousadia de vir defender agora na praça pública, propostas que a lei portuguesa já resolveu de outro modo. Não deviam pensar o que pensam, nem publicar o que defendem. Ponto!
Sucede que há cinquenta anos, o regime mudou para que diferentes perspetivas da sociedade se pudessem expressar livremente.
Sejam de direita ou de esquerda, até de extrema-direita e até de extrema-esquerda; novos e velhos, de qualquer raça ou confissão, de qualquer condição social ou de diferente orientação sexual, sendo mesmo alguns grisalhos e outros à espera de o serem.
Cinquenta anos depois do 25 de abril, é espantoso como alguns defensores da liberdade (felizmente, não todos), se converteram em polícias do cancelamento cultural.
Exaltam a liberdade para quem pensa dentro da (sua) bolha. Condicionam-na para quem se atreve a pensar diferente, leia-se, fora da bolha vigente.
Chegam a aconselhar os ‘prevaricadores’ a calarem o que pensam sobre as matérias que consideram adquiridas e para sempre decididas. Aborto, eutanásia e por aí fora – está tudo decidido e não mexe.
Claro que em 1998, quando o aborto foi chumbado em referendo, não pensaram assim. E só descansaram quando em 2007, em novo referendo, conseguiram inverter o resultado de 1998.
Tal como quando a lei da eutanásia foi reprovada nunca desistiram, até conseguirem uma viabilização do diploma.
Fizeram-no, aliás, porque tal é próprio da democracia e da liberdade: usar as regras do combate democrático para viabilizar propostas e convicções.
Agora, porém, alguns destes polícias do pensamento, não querem que outros lutem com a mesma determinação. Como se ela, a determinação, fosse património exclusivo de quem circula na faixa esquerda do pensamento.
E porque se indignam estas pessoas? Por haver quem tenha a ousadia – talvez mesmo, a coragem - de pensar de outro modo, numa espécie de delito de opinião, ao jeito dos regimes ditatoriais - de todos os regimes ditatoriais, sejam de extrema-direita ou de extrema-esquerda.
Para além de condicionarem a liberdade de pensamento dos outros, procuram assim coartar também a liberdade de ação cívica que qualquer grupo ou pessoa tem o direito de prosseguir.
Meio século depois do 25de Abril, esta liberdade dualista – muita para os amigos, condicionada e vigiada para os restantes – não honra a democracia.
Assegurar convivência e tolerância entre pessoas que pensam de modo diverso é o segredo da democracia e uma das bases do bem comum.
O inverso é perigoso. Primeiro, porque transforma adversários em inimigos.
E em segundo lugar, porque reduz a democracia a uma caricatura, que procura triturar opiniões e iniciativas que destoam do pensamento único.
Foi precisamente para evitar que tal sucedesse que depois do 25 de abril foi tão importante o 25 de novembro.
Sem isso, queridos adversários, Portugal teria sido reduzido a nova ditadura, mas de sabor soviético.
Todos sabemos que sim? Então, que nunca o esqueçamos.