Obama passou testemunho a Hillary na noite de todas as estrelas
28-07-2016 - 08:34
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Durante os discursos em Filadélfia, o independente Bloomberg foi o mais duro com Trump, um “demagogo perigoso”, “hipócrita”, que destruiria o país se o gerisse como gere os seus negócios.

Foi a noite das estrelas. Obama, Biden, Kaine, Bloomberg, Panneta e ainda… Hillary Clinton, que apareceu de surpresa, no final. E isto para mencionar apenas os conhecidos, que nem sequer foram os que geraram os momentos mais emocionantes. Esses vieram de cidadãos anónimos que puseram meio pavilhão a chorar.

Falta ainda a noite de encerramento, mas aconteça o que acontecer é praticamente impossível atingir o nível de quarta-feira. A convenção democrática de Filadélfia assistiu a uma sequência de discursos que não só empolgaram os presentes como traçaram uma imagem da América que não podia contrastar mais com a de Cleveland, na semana passada.

Mas assistiu também à passagem simbólica de testemunho entre Obama e Hillary Clinton. Porque quando o presidente acabou de falar, Hillary surgiu no palco para o saudar. Abraçaram-se, riram, deram as mãos, saudaram a multidão e saíram de cena juntos. Ficou bem patente uma comunhão de propósitos que não sucedeu nas passagens de testemunho anteriores.

Al Gore, que tinha sido vice-presidente de Clinton, quando se candidatou em 2000 evitou a presença de Bill ao seu lado, convencido que os escândalos pessoais do então presidente o prejudicariam. E John McCain, quando se candidatou em 2008 pelos republicanos, também evitou a presença do então presidente George W. Bush convencido que a sua impopularidade o prejudicaria.

Obama tinha acabado de dizer que o Partido Democrático e o país não podiam ficar em melhores mãos do que as de Hillary, porque ele próprio nunca conheceu “ninguém mais qualificado do que ela para exercer o cargo de presidente. E isto inclui-me a mim e a Bill”.

Uma demonstração de modéstia pela qual pediu desculpa a Bill Clinton por o ter incluído, “mas é a verdade”. Uma verdade que compreende também o facto de HiIlary ser mulher e afinal tudo ser mais difícil para as mulheres. Uma dificuldade que Obama ilustrou com uma citação de Ginger Rogers, actriz e bailarina, que disse um dia que fazia “o mesmo que Fred Astaire mas de costas e com saltos altos”.

Obama enalteceu Hillary, naturalmente, o seu percurso de vida, a sua capacidade de trabalho, o seu discernimento, e traçou uma imagem da América que em tudo contraria o discurso de Trump e dos republicanos. Serviu-se mesmo da célebre imagem de Ronald Reagan – “a América é a cidade luminosa na colina” – para a contrastar com a de Trump: “uma América dividida, assustada pelo crime e pelo medo”.

E aqui atacou o cesarismo de Trump que se coloca como o homem providencial que vem salvar o país. “A América é grande e forte, e essa grandeza não depende de Trump, nem de ninguém. Os americanos não são fracos nem precisam de quem os salve. Traçam o seu destino colectivamente”. São duros, resistentes, autoconfiantes, valores que “já derrotaram comunistas, fascistas e demagogos”.

A América de Obama é a América da esperança, não a do medo, mas também a América do compromisso democrático, não da demonização do outro. Que é aquilo que “Trump quer fazer do país, colocar as pessoas umas contra as outras e isolar o país do resto do mundo”. Por isso, acrescentou, “no mundo não se entende o que se está a passar nestas eleições”.

“Demagogo perigoso”

Mas no que toca a críticas ao candidato republicano, Obama foi claramente batido por Michael Bloomberg e pelo vice-presidente Joe Biden.

O antigo “mayor” de Nova Iorque, célebre multimilionário e filantropo, apresentou-se como independente que é, porque “nenhum partido tem o monopólio das boas ideias”. Ele que já foi democrata e mais tarde republicano, sentiu agora um imperativo de consciência de apoiar Clinton “pelo bem do país”. Porque é preciso derrotar “um demagogo perigoso” que “em vez de resolver problemas, lança bombas”.

Bloomberg costuma encorajar homens de negócios a candidatarem-se a cargos políticos porque geralmente o seu pragmatismo ajuda a resolver os problemas. Mas não é esse o caso de Trump, que começou os negócios com um cheque de um milhão de dólares do pai e que tem dito que gerirá o país como gere os seus negócios.

“Deus nos livre”, disparou Bloomberg, traçando um retrato devastador dos negócios de Trump, marcados por bancarrotas, processos judiciais, contratos não cumpridos, pagamentos falhados, extorsões a incautos, etc. Acusou-o de ser um “farsante” e “hipócrita” que se aproveita dos imigrantes para praticar salários baixos, mas que agora diz querer expulsar muçulmanos, mexicanos e outros, porque “não compreende o excepcionalismo americano”.

Que Hillary compreende porque sabe distinguir entre a realidade e a “reality TV” e representa por isso a “escolha responsável”, enquanto Trump seria uma escolha “arriscada, irreflectida”. Nesta eleição, “temos de colocar na Casa Branca uma pessoa saudável”, disse Bloomberg, que tenha “amor pelo país e não apenas por si próprio”.

Antes dele, Joe Biden também não tinha sido brando com Trump, que acusou de falta de compaixão e de civismo e de “nada saber sobre a classe média americana”. Aliás, de “não saber nada de nada, ponto”. O candidato “mais mal preparado de sempre” para ser presidente, sem a mínima ideia de como o mundo funciona e a política externa deve ser gerida. Ao defender a discriminação de certos grupos étnicos ou religiosos, a prática de tortura pelas tropas americanas, o bombardeamento de inocentes, ao louvar ditadores como Putin, Trump contraria todos os valores americanos, segundo o vice-presidente.

A certa altura, pediu ao auditório que reflectisse sobre o seguinte: como se pode tirar prazer de despedir uma pessoa? Como se pode ter prazer nesse acto que priva alguém do seu trabalho?, perguntou, numa referência ao “reality show” televisivo que Trump apresentou durante muitos anos e em que celebrizou a frase “estás despedido” quando algum concorrente cometia erros.

“Acreditem em mim”

O homem que se propõe ocupar o lugar de Biden fez a sua estreia na convenção e foi ouvido com toda a atenção porque soube captar a assistência. Tim Kaine contou a história da sua vida, elogiou Hillary Clinton, e foi bastante incisivo em relação a Trump, que acusou de não ter programa político ou qualquer ideia para governar o país. “Ele só diz ‘acreditem em mim’, porque não tem qualquer solução”. E deu exemplos: acreditaram nele os que trabalharam nos casinos de Atlantic City, mas ele abriu falência e resgatou de lá muito dinheiro, deixando muita gente em dificuldades. Acreditaram nele os que investiram as suas poupanças em condomínios na Florida que nem sequer foram construídos deixando gente na miséria. Acreditaram nele os que pagaram muito dinheiro por cursos na sua universidade que eram uma fraude.

“Não se pode acreditar numa palavra dele”, rematou Kaine, que exemplificou ainda com Barbara Bush (ex-primeira dama) que disse que nenhuma mulher poderia votar nele por causa do que ele pensa das mulheres; com John Kasic, o governador do Ohio que nem apareceu na convenção de Cleveland realizada no seu estado; no seu biógrafo que disse que “a mentira é a sua segunda natureza”.

Antes dos discursos destes pesos pesados, passaram pelo palco cidadãos anónimos afectados de uma forma ou de outra por massacres com armas de fogo em que a América infelizmente é fértil. A mãe de um jovem morto na discoteca de Orlando, na Florida, a filha de uma professora morta na escola de Newtown, no Connecticut, duas mulheres negras que sobreviveram ao massacre numa igreja de Charleston, na Carolina do Sul, um polícia reformado que durante os anos em que exerceu viu cair em serviço oito companheiros de ofício. E ainda, menos anónima, a ex-congressista democrata da Califórnia, Gabrielle Giffords, que foi baleada na cabeça quando fazia campanha junto de um centro comercial e esteve meses em coma.

Todos contaram a sua histórica dramática com grande dignidade e contenção, mas isso não evitou que as lágrimas corressem em inúmeros rostos da plateia. O objectivo dos democratas é intensificar a pressão social para conseguir aprovar leis mais restritivas sobre a posse e porte de armas, algo a que os republicanos se têm sistematicamente oposto no Congresso. As sondagens assinalam que os americanos são hoje esmagadoramente a favor de maior controlo na venda de armas.

A convenção termina esta quinta-feira à noite com o discurso de aceitação de Hillary Clinton da sua nomeação para candidata oficial do Partido Democrático à Casa Branca.