Foi em dezembro que se começou a ouvir falar na condenação do cardeal George Pell, mas a informação ainda não era oficial. Para não influenciar um outro julgamento já agendado, o tribunal australiano proibira qualquer divulgação de detalhes do primeiro. Gerou-se uma situação estranha, com órgãos de imprensa, incluindo católicos, de todo o mundo a dar uma notícia que a imprensa australiana estava proibida de abordar.
A confirmação acabou por chegar esta semana, na segunda-feira. O segundo julgamento foi suspenso por falta de provas credíveis, mas o primeiro tinha, de facto, terminado com condenação do cardeal, que se tornou assim a mais alta figura da Igreja Católica a receber um veredito desta natureza.
O caso recente do cardeal McCarrick, entretanto demitido do estado laical, é comparável, mas Pell era atualmente membro do grupo restrito de cardeais que aconselha o Papa Francisco sobre as reformas a fazer na Curia Romana. Na imprensa é comum a referência ao australiano como "número 3" da Igreja.
O cardeal, contudo, sempre rejeitou as acusações. Pell foi condenado de abusar sexualmente de dois rapazes, coristas da catedral onde ele acabara de celebrar uma missa de domingo, pouco depois de se ter tornado arcebispo de Melbourne, em 1996.
A outra acusação, que acabou por não avançar para julgamento, dizia respeito a alegados abusos numa piscina municipal em Ballarat, onde o então jovem padre George Pell costumava divertir-se com a miudagem local, participando em jogos, lançando-os ao ar, conversando e respondendo a perguntas dos rapazes.
Antes do escândalo, essa imagem de um homem bem constituído a conviver tranquilamente com jovens e a participar nas suas brincadeiras era o retrato mais comum de George Pell, que era conhecido acima de tudo como um homem prático, pouco dado a complexidade linguística, sem preocupações politicamente corretas e descomplexadamente conservador.
Esse seu estilo granjeou-lhe muitos amigos, mas também muitos inimigos. Pell não pedia desculpas por defender a doutrina católica. Defendia benefícios fiscais para os casais com filhos menores que se mantinham juntos e um imposto especial para quem se separava, para compensar os danos sociais causados pelo divórcio. Numa outra declaração mais polémica, ainda antes de ser acusado de qualquer tipo de crime, disse que o aborto era um mal moral mais grave que o abuso sexual de menores.
Cargo no Vaticano
Foi precisamente a sua fama de liderança prática e sem cerimónias que o levou a ser nomeado pelo Papa Francisco para supervisionar a reforma das finanças do Vaticano, a 24 de fevereiro de 2014.
A encomenda era tudo menos simples. Os escândalos financeiros do Vaticano sucediam-se e pedia-se urgentemente uma limpeza e maior transparência. Nos últimos anos, provavelmente só o escândalo dos abusos sexuais é que abalou mais a credibilidade da instituição.
Pell deixou Sidney em 2014, de onde era agora arcebispo, para se instalar em Roma. No Vaticano parecia funcionar como contrapeso para a maioria dos outros conselheiros do Papa Francisco, vistos como sendo liberais ou progressistas.
No sínodo sobre a Família, que levaria à publicação do Amoris Laetitia, a voz de Pell foi uma das que se ergueu contra qualquer abertura dos sacramentos a pessoas em situação matrimonial irregular, levando até à troca de bocas com o cardeal Marx, tido como um dos principais defensores dessa mesma abertura.
Suspeitas e acusações
A acusação de que Pell tinha abusado de jovens não marcou a primeira vez que se viu envolvido na crise de abusos sexuais que tem abalado a Igreja.
Nos seus primeiros tempos de padre, em Ballarat, no estado australiano de Vitória, Pell chegou a partilhar casa com um padre que foi mais tarde condenado como abusador crónico. O futuro cardeal negou alguma vez ter tido conhecimento deste facto, apesar de ter chegado a fazer parte do conselho que ajudava o bispo a decidir as nomeações e que mudou várias vezes de paróquia, o padre Gerald Ridsdale. Pell diria mais tarde que o bispo escondeu propositadamente essa informação dos membros do conselho.
Já depois de ter sido nomeado bispo, Pell foi novamente criticado pela forma como lidou com casos de abusos envolvendo padres da sua diocese, dificultando o acesso das vítimas a indemnizações.
Quando o Governo australiano nomeou uma comissão real para analisar o tema dos abusos sexuais sobre menores no país, Pell foi uma das principais testemunhas da parte dedicada à Igreja Católica, mas as suas respostas foram consideradas insensíveis por alguns analistas para a extensão dos danos causados às vítimas por uma longa cultura de encobrimento.
Finalmente, em 2016, a polícia de Vitória confirmaria que Pell estava a ser investigado por abusos sexuais. O cardeal negou imediata e categoricamente todas as acusações.
O primeiro julgamento acabou por terminar sem consenso do júri, e por isso foi repetido. A repetição terminou esta semana numa condenação por unanimidade.Pell fica agora preso enquanto é decidida a sua sentença, não obstante ter interposto recurso.
Dúvidas e reações
Ao contrário do que aconteceu com Theodore McCarrick, as revelações sobre o cardeal Pell têm sido recebidas com muito ceticismo por comentadores e especialistas dentro e fora da Igreja.
Os críticos variam desde o católico americano George Weigel, que é conservador e biógrafo do Papa João Paulo II, até ao colunista australiano Andrew Bolt, que num artigo publicado no "The Courier Mail" fez questão de dizer que não é cristão, quanto menos católico.
O biógrafo do Papa Francisco, Austen Ivereigh, publicou uma série de tweets, em que manifesta a sua desconfiança de que Pell esteja a ser usado como bode expiatório, como defende Bolt, num país traumatizado com as revelações de abusos sexuais das últimas décadas.
Em comum, os críticos apontam o facto de as provas apresentadas em tribunal não serem credíveis. Dos dois homens que Pell é acusado de ter abusado, um disse à sua mãe antes de ter morrido que nunca tinha sido vítima de abusos sexuais. Segundo a outra alegada vítima, o crime terá acontecido na sacristia da catedral de Melbourne e Pell estaria paramentado na altura, sendo que várias testemunhas garantiram que depois de uma missa de domingo, sobretudo presidida pelo arcebispo, haveria sempre gente a entrar e a sair da sacristia e que é, na prática, impossível para um homem conseguir cometer aqueles atos estando paramentado com todas as vestes litúrgicas.
Os jurados, pelo contrário, não tiveram as mesmas dúvidas e condenaram mesmo Pell, que aguarda agora, em prisão, a sentença. A leitura será feita no dia 13 de março, sendo que a pena pode chegar aos 50 anos de prisão. Mesmo uma sentença mais leve acabará por se traduzir, para todos os efeitos, numa pena de prisão perpétua, uma vez que Pell já tem 77 anos de idade.
Só depois de conhecida a sentença é que Pell poderá interpor recurso.