Os acontecimentos violentos e organizados na Academia de Alcochete deixaram aparentemente meio mundo em estado de choque. O caso não é para menos. Seria, contudo, errado tomá-los como caso isolado e extraordinário, que passará ao esquecimento, quando a temperatura descer. Tudo indica ser prudente e necessário tomá-los como sintoma grave de um clima que há bastante tempo se tem vindo a desenvolver no campo desportivo, que não apenas no futebol.
O facto de vários nomes conhecidos terem dado cobertura, ao longo dos últimos anos, a comportamentos e palavras incendiárias do presidente do Sporting tem sido verberado e denunciado. Na verdade talvez não espante muito que quem anda (e se deixa envolver) nas guerras e paixões clubísticas tenha mais propensão para tolerar sintomas e menosprezar sinais de alarme (esta esquizofrenia entre uma vida social ‘normal’ e a militância cega por uma causa não é, de resto, nada de verdadeiramente novo, do ponto de vista histórico).
A mim preocupa-me que quem deveria estar atento e agir perante o desenvolvimento daquilo que pode ser visto como a incubação do ovo da serpente - hoje com múltiplos e preocupantes sintomas em diferentes partes do mundo - olhe para estes casos e não veja o risco e alcance que comportam. E há três entidades que deveriam assumir aqui as suas responsabilidades. A primeira é a dos centros de investigação em ciências sociais e humanas, a quem cabe ajudar-nos a conhecer melhor as sociedades, incluindo os seus porões. A segunda são os meios de comunicação social, que fariam bem em ligar os focos para realidades e situações menos visíveis e compreensíveis, em vez de dissecarem e debaterem até à exaustão o sexo dos anjos. A terceira é o poder político que, em vez de instância que acautela e previne o risco, está ele próprio enterrado em - quando não cativo de - fenómenos como o clubismo e os interesses que manipulam o desporto. Todas estas instâncias têm os seus alibis. Mas também têm as suas responsabilidades.
Enfim, convocando aqui um notável texto de Adriano Miranda no Público de ontem (“Futebol, o espelho do mundo que temos construído”), responsabilidades (e alibis) têm também os pais e educadores que, criticando certamente os jagunços de Alcochete, andam numa fona a fazer dos seus rebentos craques de um espectáculo que de desporto tem cada vez menos.