BE. "O PS prefere a navegação à vista para ir fazendo o que quer sem prestar contas a ninguém"
14-09-2021 - 07:00
 • Eunice Lourenço , Sofia Freitas Moreira (vídeo)

Catarina Martins diz que ainda não foi possível “desatar os nós principais” para o Orçamento de 2022 e espera ter força nas autárquicas para forçar mais acordos com os socialistas.

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O Bloco de Esquerda não tem qualquer presidência de câmara e teve 3,9% nas eleições de 2017. Mas a líder do partido, Catarina Martins, considera que tem condições para crescer e ter mais influência em várias autarquias, entre as quais Lisboa.

Em entrevista à Renascença, Catarina Martins critica a descentralização, defende que saúde e educação não devem sair do Estado central, mas defende a regionalização para promover a coesão nacional

O Bloco de Esquerda nos últimos dias fez conferencias de imprensa sobre assuntos orçamentais: primeiro sobre saúde, depois sobre legislação laboral. São assuntos sobretudo relacionados com o Orçamento do Estado (OE). Até que ponto esta campanha também é uma negociação do Orçamento do Estado?

Não é. A campanha autárquica não é negociação do OE, mas o OE é importante e, de facto, o Governo, ao não ter negociado antes o OE acaba por fazer uma sobreposição dos dois tempos. A nossa campanha autárquica tem objetivos definidos e temos falado dos grandes temas que nos levam pelo país: as questões da habitação, do clima, dos transportes, questões de igualdade, de justiça social ... claro que, ao mesmo tempo, fomos apresentando as nossas propostas para o OE. O Governo está a elaborar a sua proposta agora e é natural que o BE apresente ao país as suas prioridades de uma forma clara. Apresentamos, por um lado, oito medidas que nos aprecem fundamentais para uma retoma de cuidados não-Covid no SNS. Por outro lado, queremos negociar legislação laboral ao mesmo tempo do OE porque temos um problema de baixos salários em Portugal, tanto de quem é precário como de quem não é e, na verdade, o OE, por si só, não é capaz de garantir uma recuperação de salários no setor privado, por muito bom que o Orçamento seja. Uma boa parte das pessoas não vê a sua vida melhorar se não for alterada legislação laboral que permite o congelamento de salários, a enorme precariedade ... No momento em que o Governo anuncia milhões se não mexemos na legislação do trabalho, o que vai acontecer é que à vida concreta de quem trabalha não chega nada.

O BE já tentou fazer isso no OE para 2021, também colocou questões laborais na negociação que não tiveram sucesso do ponto de vista do Bloco. O PCP faz o contrário: coloca a legação laboral num plano e a negociação orçamental noutro. Isto marca uma diferença entre os dois partidos? Acha que vai resultar este ano o que não resultou nas negociações do ano passado?

O país tem de resolver os problemas que tem. Estamos num país muito desigual e um crescente número de trabalhadores sente a sua vida estagnada. Com a pandemia, o que já era difícil ficou ainda mais difícil. Ao mesmo tempo, vemos que Portugal produz mais riqueza, ela está é a ficar mais concentrada na mão de poucos. A única forma de redistribuirmos riqueza e termos justiça social é com leis de trabalho porque, muito mais do que apoios sociais, as pessoas precisam de salários justos e isso consegue-se na legislação laboral.

O primeiro-ministro, no congresso do PS, reconheceu a necessidade de melhorar salários e fez propostas para combater a precariedade. Não são propostas que resultem? Não chegam?

Nós analisamos as 64 propostas que o Governo entregou na concertação social e nestas 64 propostas a maior parte das coisas redunda numa espécie de pedidos de boas intenções aos empregadores e não resolve. Não vamos ter uma recuperação de salários e do trabalho em Portugal se achamos que dependemos da boa vontade dos patrões. Tem de haver regras para uma economia justa.

A troika desregulou imenso as relações de trabalho, as pessoas nunca mais receberam as horas extraordinárias, os feriados como devia receber. Por outro lado, generalizou-se o outsourcing, o trabalho temporário. Há gerações que são das mais qualificadas do país que veem constantemente uma parte do seu salário a ficar na empresa intermediária e isto não vai lá pela boa vontade, é preciso mesmo regras na economia.

Disse que o Governo está a trabalhar a proposta de Orçamento. Isso quer dizer que ainda não estamos na fase de discussão de medidas concretas com os partidos?

O BE tem reunido e continuará a reunir, não há aqui nenhuma pausa de reuniões. É preciso é saber o que se está a construir, qual é a perspetiva.

Mas essas reuniões sobre qual é a perspetiva terão sido as iniciais. Ainda não estão em questões de pormenor?

Não estamos em questões de pormenor porque ainda não foi possível desatar os nós principais do que é que vamos fazer. O governo tem confiado muito na ideia de que os anúncios de milhões vão resolver os problemas das vidas das pessoas. O problema é que os anúncios não são nada para a vida concreta das pessoas. Aquilo que precisamos é garantir que há salários, que quem trabalhou toda a vida tem uma pensão digna, que quem tem o salário congelado há décadas vê o seu esforço reconhecido. Isto não vai lá com anúncios, senão até corremos o risco de uma enorme descredibilização do processo democrático porque se anunciam milhões e a vida das pessoas fica cada vez mais difícil. Isso seria trágico e não queremos que isso aconteça.

Vamos então às autárquicas propriamente ditas. O BE é um partido com pouca implantação autárquica. Quais são os vossos objetivos nestas eleições autárquicas?

Vamos a estas eleições com muita determinação, mas também com muita humildade e queremos mesmo ter mais força porque achamos que há tanto para fazer nas autárquicas, este é um momento decisivo e temos muito trabalho para mostrar. Nós, com sete por cento na cidade de Lisboa e porque o PS não teve maioria absoluta conseguimos forçar um acordo que fez coisas mudarem na política da cidade e a política nacional. Este ano letivo todas as crianças e jovens até ao 12º ano têm manuais gratuitos e siso começou em Lisboa e depois estendeu-se a todo o país. Há mais autocarros, mais motoristas, um passe social mais barato e tudo isso foi acordo de Lisboa. E mostramos que é possível não fazer as coisas como sempre foram feitas na política autárquica e isso é muito importante. Ouvíamos, por exemplo, falar das pessoas em situação de sem abrigo no jantar de Natal ou quando se abria as estações de Metro nas vagas de frio. Acabamos com isso em Lisboa com uma resposta muito mais robusta. Há duas mil pessoas em alojamento temporário e já há mais de 300 pessoas a terem uma casa pela primeira vez.

Se faz tão boa avaliação desse acordo, ainda assim não é possível irem juntos a eleições ou não faz sentido par ao Bloco?

Estas medidas foram conseguidas porque o BE teve força e o PS não teve maioria absoluta e agora precisamos de força para fazer aquilo que é preciso fazer e o PS não quis. Por exemplo, uma solução de habitação com preços acessíveis em Lisboa. O PS insiste que, financiando os privados eles vão querer aderir a um programa de renda acessível, mas os privados ganham sempre mais dinheiro com a especulação e, portanto, nunca estiveram interessados e esse plano não deu nenhuma casa. Ainda assim, o Bloco forçou um programa público para habitação em Lisboa e há mais de mil casas prontas nesse programa. Quer dizer que os sete por cento do BE garantiram toda a habitação acessível que há em Lisboa e o PS não garantiu nada. Sabemos que mil casas não é nada, mas não era o nosso pelouro. Tínhamos a educação e os apoios sociais.

A habitação é um tema central nesta campanha. O Governo e o PS apresentam o programa de Recuperação e Resiliência (PRR) como a grande resposta para os prolemas da habitação. O Bloco acredita que o PRR é essa resposta?

Achamos que o PRR deve ser mobilizado para essa resposta, o problema é como. Ou nós temos força para, nas autarquias, construir parques públicos de habitação que permitem ter uma dimensão que não é apenas habitação social, mas que é alguma coisa que regula o mercado ou esse dinheiro pode ser investido a apoiar promotores privados como quis Fernando Medina em Lisboa e acabou com nenhuma casa. Aqui a opção do BE é por mobilizar todos os fundos que existem para resolver os problemas do país: habitação, transportes, ambiente, mas é também para que os milhões tenham efeito na vida das pessoas. Dou outro exemplo de como o BE mudou a política autárquica que acho que também é importante para este momento de milhões. O BE tem o pelouro da educação em Lisboa e as escolas de Lisboa que estavam ao cuidado da autarquia precisavam de obras e podíamos ter feito como sempre, que é ver onde é que há problemas mais sensíveis e onde há quem reclama mais e fazer lá obra ou fazer o que o BE fez, que foi pedir ao Laboratório Nacional de engenharia Civil (LNEC) um levantamento dos problemas em todas as escolas e as prioridades e as obras seguiram os estudos do LNEC sobre o que eram mais urgente, o que era estrutural, o que tinha de ser feito. Garantimos a segurança de todas as crianças, mesmo as dos contextos mais desfavorecidos que têm menos capacidade reivindicativa e temos um instrumento de transparência. Toda a gente percebe onde é que o dinheiro está a ser gasto e porque é que está a ser gasto assim. Isto nunca tinha sido feito, quando contactamos o LNEC eles ficaram admirados porque nunca ninguém lhes tinha pedido isto.

Estão disponíveis para continuar a ter essa influência de que fala no próximo mandato autárquico. O líder do PCP fala num "arranjinho" entre o Bloco e o PS na Câmara de Lisboa e diz que não está disponível para coisas desse género. O Bloco está disponível para continuar neste tipo de acordo?

O acordo entre o Bloco e o PS é muito claro e dá uma perspetiva do que se vai fazer na cidade. Tínhamos pelouros, tínhamos condições, não houve nenhum cheque em branco ao PS. Aliás, o BE votou contra a constituição da SRU (Sociedade de Reabilitação Urbana); quando PS quis encontrar um bode expiatório para o problema da partilha de dados de manifestantes nós não votamos a exoneração do responsável de dados, que era o único que tinha feito o que devia ser feito. Tivemos sempre autonomia, mas cumprimos um acordo com objetivos e os acordos são bons porque é bom ficar escrito quais são os objetivos e o que se vai fazer

É o que falta agora no Orçamento?

Claro! O PS por vezes prefere esta espécie de navegação à vista, seja no Governo, seja na câmara de Lisboa para tentar fazer uma chantagem conveniente aos vários lados da política para ir fazendo o que quer sem prestar contas a ninguém. No BE achamos que isso é errado. Deve ser possível, com a força que existe, fazer um acordo que seja claro e que preste contas aos cidadãos e às cidadãs e é isso que queremos em Lisboa. Sabemos que a direita não conta nada nestas eleições e o que está aqui em causa é saber se o PS tem ou não maioria absoluta e esperamos que não tenha e que o BE tenha a força para podemos fazer um acordo que se faça o que o PS não deixou fazer até agora e avanços fundamentais em área como a habitação.

Tem esperança que isso também seja necessário noutras autarquias?

Sim, achamos que isso pode acontecer e estaremos disponíveis para isso. O BE nunca servira uma maioria de direita neste país, temos opções claras, não passaremos cheques em branco a ninguém, mas temos disponibilidade para à esquerda encontrar soluções de executivos autárquicos que permitam responder às grandes crises do nosso tempo: habitação, clima, transportes, ambiente, igualdade. O poder local pela sua proximidade tem de ter a obrigação de cuidar da comunidade e muitas vezes acaba por reproduzir os piores tiques centralistas do Governo.

Já que fala em centralismo, uma das questões destas autárquicas é a descentralização, com o primeiro-ministro a repetir várias vezes que os autarcas que vão ser eleitos dia 26 vão ser aqueles que têm mais poder. Como é que o Bloco avalia o processo de descentralização?

Fazemos uma avaliação negativa porque estamos a falar é de um processo de municipalização, a entrega a municípios de serviços fundamentais. Se um município como Lisboa, por exemplo, tem massa critica para garantir a gestão e o financiamento dos serviços e manter a qualidade, nos municípios mais pequenos ou com menos recurso corremos o grande risco de os serviços terem menor qualidade e não queremos uma educação de primeira ou de segunda ou uma saúde de primeira ou de segunda de acordo com o concelho. O acesso aos serviços públicos fundamentais deve ter a mesma qualidade e capacidade em todo o país e não há nem as transferências orçamentais correspondentes à delegação e competências, nem a massa critica nos concelhos mais pequenos para garantir esse trabalho.

Isso quer dizer que matérias de educação e de saúde, por exemplo, não devem ser descentralizadas ou não devem ser descentralizadas de forma igual para todos os concelhos?

O problema é que em Portugal não há níveis intermédios de decisão.

Não há regionalização

Não há regionalização, as CCDR (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) têm aquele pseudo-processos de eleição por autarcas, não existe responsabilização de facto de níveis intermédios e, depois, entregar aos municípios é criar um país a várias velocidades. E achamos que, em áreas fundamentais como educação e saúde, não pode haver várias velocidades, todas a gente tem de ter direito ao mesmo serviço público de qualidade em todo o território. Uma coisa é insistir que o investimento tem de fazer coesão territorial, outra coisa é dizer que se for um autarca a decidir a coesão territorial está garantida.

O que é se pode ou deve descentralizar ou municipalizar?

Achamos que é preciso níveis intermédios para que se faça isto e não há nenhum problema, num país com a dimensão de Portugal, assumir que há matérias que são centrais. Uma forma de campanha do PS é dizer ‘vêm aí os milhões, nós estamos no Governo, vamos estar nas autarquias’. Isto é muito pernicioso para a democracia.

Mas está a ser assumido de forma muito clara pelo PS, que diz que é preciso ter mais autarcas para gastar estes milhões, é preciso ter mais autarcas do PS para eleger todos os presidentes das CCDR...

Isso é perigosíssimo. Como já vimos no passado podem vir milhões europeus, os milhões passam, há uma elite que até pode enriquecer, mas as debilidades estruturais do país permanecem. Essa é também uma das razões para dizermos que a presença do BE é fundamental porque toda a gente sabe como o BE é intransigente na defesa do interesse público e da transparência. Mesmo quem não concorde com todo o programa do BE vai querer o BE na sua freguesia ou no seu concelho.

Para fiscalizar?

Para terem a certeza que o dinheiro prometido para uma creche é mesmo uma creche e não uma rotunda, para terem a certeza que o dinheiro vai para a habitação e não é mais uma negociata qualquer, para ter a certeza que vai para transportes, para a floresta, para as grandes respostas ambientais de que o país precisa e não para mais PPPs de qualquer coisa ou mais um negócios de eucaliptos. Para nós é fundamental que as autarquias sejam mais fortes do ponto de vista da responsabilização democrática porque precisamos mesmo de resolver os problemas estruturais do nosso país.

E a regionalização pode ser um caminho para resolver esses problemas estruturais?

Pode, mas não resolve sozinha. é preciso que haja investimento, que haja democracia, que haja transparência, que haja uma aposta no território. Estas coisas muitas vezes parecem muito vagas, a aposta no território, mas alterações climáticas não são uma cosia do futuro, são o presente, são agora e ou temos capacidade de investir na floresta, na agricultura e no desenvolvimento rua, em ferrovia em todo o território ou vamos continuar, por um lado, a poluir e a aumentar a probabilidade de fenómenos extremos e perigosos e, por outro lado, vamos ter um território cada vez mais frágil onde é mais inseguro estar. Nos próximos anos estas decisões vão ser fundamentais.

É suposto que os investimentos do PRR sejam todos avaliados à luz das alterações climáticas.

Mas infelizmente a nossa experiência em Portugal é que os partidos ditos com tradição autárquica não têm olhado para estes assuntos. Uma das coisas mais chocantes é o facto de não haver saneamento básico em tantos sítios do país. Em questões ambientais, de qualidade de vida, de desenvolvimento do território não foram acauteladas. Tem existido uma pressa de mostrar obra, de fazer a inauguração, que tem descurado as questões ambientais e territoriais que podem não se ver no dia da inauguração, mas são o que determinam o nosso futuro.

O PS remete o reinício do processo de regionalização para 2024 e o primeiro-ministro disse que não se voltará a discutir o desenho das regiões. O Bloco aceita isto?

Houve uma comissão feita para estudar a regionalização, liderada pelo engenheiro João Cravinho, e julgo que era bom olhar para o relatório dessa comissão. Achamos que é possível ter um país mais democrático e verdadeiramente descentralizado porque tem instâncias regionais de tomada de decisão. O que é claro é que houve um acordo entre o Governo e o Presidente da República para a questão não ser levantada e os autarcas do PSD e do PS não gostaram e eles montaram esta forma de não se discutir.

Falamos muito do PRR, fala-se pouco da Política Agrícola Comum, que é quase tanto dinheiro quanto o PRR só para a agricultura e a floresta. São dez mil milhões de euros e não está a ser discutida e boa parte do dinheiro pode bem ser para pagar a latifundiários que nem sequer cultivam. Esse dinheiro tem de ser gasto a floresta e no desenvolvimento rural para teros um país equilibrado. Precisamos em todas estas cosias de fazer uma discussão clara e de ver o rasto do dinheiro.

Onde é que gostava de ter uma surpresa na noite de dia 26?

Gostava de ter uma boa surpresa em muitas autarquias. O BE tem dado provas de que muda a política autárquica. Falei muito de Lisboa e é injusto para com outro trabalho que temos feito. Por exemplo, na região Oeste, no Alentejo, no Algarve, foi graça as representantes do BE terem levantado, nas várias assembleias municipais, o problema da prospeção que aqueles acordos absolutamente ruinosos não aconteceram. Alguém acha que saberíamos o que sabemos sobre Odemira se o BE não se tivesse batido tanto para dizer que não podia ser, que um mar de plásticos não pode ser o futuro do litoral alentejano, que o trabalho migrante, trabalho escrevo não pode ser o futuro da nossa economia? Esse trabalho tem sido feito e o Bloco já está a mudar a política autárquica. Esse trabalho será reconhecido e o BE tem todas as condições para crescer nestas eleições.