“Vamos ficar como a Venezuela. É a mesma coisa”. O alerta, em jeito de lamento, é da irmã Maria Lúcia Ferreira, religiosa portuguesa, que pertence à Congregação das Monjas de Unidade de Antioquia.
A viver no Mosteiro de São Tiago Mutilado, na vila de Qara, a irmã Myri, como é conhecida, manifesta o seu ceticismo face às dificuldades que os cidadãos enfrentam no dia-a-dia, na Síria, no dia em que se assinalam dez anos de guerra.
Em mensagem enviada à Fundação AIS em Lisboa, a religiosa refere que a “infeliz data de 15 de março de 2011 marcou o início de um tormento que parece não ter fim e que continua a afetar profundamente a vida de milhões de pessoas, a começar no acesso a bens de primeira necessidade”.
“Começa a faltar o pão. Há muita gente que sobrevivia porque o Governo tabelou o preço muito baixo, para que todos pudessem ao menos comer pão. O preço continua baixo, relativamente baixo, mas o pior é que começa a não haver para todos. É preciso esperar quatro dias para se ter um saco de pão que tem oito pães achatados. Ora, uma grande família não pode subsistir assim”, alerta a religiosa.
De acordo com a irmã Myri, a capital da Síria é exemplo desta realidade, sublinhando que, “em Damasco, ouve-se dizer que é preciso estar na fila durante horas e o pão é racionado por famílias, um tanto para cada família, dependendo do número de pessoas”.
Aumento do custo de vida. “É o povo que paga”
A somar as estas dificuldades, a religiosa portuguesa refere que “continua a verificar-se um pouco por todo o país falhas também no fornecimento de eletricidade, principalmente durante as horas do dia”.
“O mesmo acontece com os combustíveis, como o mazut [para o aquecimento] e a gasolina. Tem havido muito pouco. É muito racionado. Também é muito difícil encontrar gás para cozinhar, é racionado e é dado às famílias um tanto a cada mês ou a cada dois meses”, indica.
Segundo a irmã Myri, o mais grave de tudo é o aumento do custo de vida, um aumento que considera ser consequência também da pandemia do novo coronavírus mas, essencialmente, das sanções económicas impostas ao regime de Bashar al-Assad, pelos Estados Unidos da América e União europeia.
“Os preços que aumentam, aumentam, aumentam… São sanções criminosas para o povo, que não afetam tanto o Governo como o povo. É o povo que paga”, denuncia a religiosa, acrescentando que devido à destruição causada pela guerra e à paralisação da economia, começa a florescer o chamado ‘mercado negro’ com a população a sentir que o país está a encaminhar-se para o pesadelo em que se transformou a Venezuela.
“O mercado negro do dólar dentro do país é uma grande dificuldade. E mesmo que o Governo tente resolver isso, é muito difícil, pois, se coloca alguns na prisão, outros aparecem, e as pessoas já dizem que nós vamos ficar como a Venezuela. É a mesma coisa”, sublinha a irmã Myri.
Papa Francisco pede o fim da guerra
O Papa Francisco lembrou este domingo, no final da oração mariana do Angelus, os dez anos de guerra na Síria. O Santo Padre recordou que foi em 15 de março de 2011 que “começou o sangrento conflito na Síria, que causou uma das maiores catástrofes humanitárias do nosso tempo: um número não especificado de mortos e feridos, milhões de refugiados, milhares de desaparecidos, destruição, violência de todas as formas e imenso sofrimento para toda a população, especialmente os mais vulneráveis, como crianças, mulheres e idosos”.
Francisco voltou a apelar ao fim da guerra, pedindo sinais de boa vontade e compromissos à comunidade internacional, com vista à recuperação económica e à reconstrução daquele país dilacerado.
“Renovo o meu premente apelo às partes em conflito, para que manifestem sinais de boa vontade, de modo que se possa abrir um sinal de esperança para a população que sofre. Também espero um compromisso decisivo e renovado, construtivo e solidário por parte da comunidade internacional, para que, uma vez depostas as armas, a situação social possa ser melhorada e que seja encaminhada a reconstrução e a recuperação económica”, disse o Papa.
Também o presidente executivo internacional da Fundação AIS apelou aos Estados Unidos e à União Europeia para facilitarem o acesso da ajuda humanitária de emergência àquele país. Um acesso que está comprometido por causa dos obstáculos criados pelas sanções impostas ao regime de Damasco.
A comunidade cristã, que tem sido das mais afetadas pela guerra na Síria, tem contado com o apoio da AIS que, desde 2011, já disponibilizou “quase 42 milhões de euros para mais de 900 projetos humanitários e pastorais da Igreja na Síria”.