Passou. O Orçamento para 2021 baixou à especialidade com os únicos votos a favor do PS e as abstenções do PCP/Verdes e PAN e das duas deputadas dissidentes. Contra, estavam todos os outros, a direita em peso e o BE, para escândalo da maioria.
O PS, numa semana para esquecer, perdeu a maioria absoluta dos Açores enfrentando a possibilidade de uma caranguejola regional, viu a capacidade do SNS quase colapsar face à explosão da Covid-19, mas em matéria orçamental conseguiu respirar fundo.
Resta saber se este será o seu primeiro queijo limiano a marcar o início do fim de um ciclo político. Uma coisa é certa: a instabilidade política soma-se agora à crise sanitária.
No ano passado, a discussão na especialidade resultou na discussão de quase duas mil propostas de alteração. O orçamento final foi a manta de retalhos possível num documento que o PS apresentou, de peito feito, na perspectiva de repetição de um excedente orçamental.
Agora, pelo contrário, Costa propôs-se, depois da experiência do “Suplementar”, dar o corpo às balas e apresentar um documento feito à imagem de um “patchwork”, de tal modo o BE parecia ter levado a sua avante, forçando uma colagem de medidas “ad hoc” impostas como contrapartida do voto a favor (mais de meia centena, assume o Governo!) ou no mínimo da abstenção.
Como em muitos divórcios, a parte do Bloco levou o ex-parceiro ao limite da paciência e da dramatização e, apesar da teimosia de ambos, o texto chegou às vésperas do debate na generalidade sem ter a garantia de aprovação.
Com a habilidade negocial que lhe é reconhecida, Costa não deixou de oferecer ao PCP todas as possibilidades de optar pela abstenção sem a qual o documento estava em risco de voltar à estaca zero. Sendo a primeira cedência de longe a mais justa e popular. Um aumento universal das pensões, logo desde janeiro, de dez euros para as pensões abaixo dos 658, o que se traduz num custo de 270 milhões, mas numa melhoria para dois milhões de pensionistas. Parece muito? Em termos isolados é um custo quase ridículo.
Contudo, se pensarmos que este é um aumento da despesa permanente o custo torna-se considerável. Por outro lado, é impossível não pensar que, só este ano, o Novo Banco terá dedicado o mesmo valor e o texto conta com um reforço para a TAP que agiganta o custo da companhia para 1,7 mil milhões, coisa que a Iniciativa Liberal não deixou passar sem um remoque.
Nos discursos finais de Catarina Martins, acusando António Costa de “fazer os jogos políticos que quiser…”, e Ana Catarina Mendes a resumir a atitude dos bloquistas como uma fuga às responsabilidades da partilha de uma governação difícil, que acaba no absurdo de terminarem a votar, com a direita, contra as suas próprias medidas “enxertadas” no texto inicial, não deixou a menor dúvida que a desavença à esquerda veio para ficar e confirmou que a Geringonça está morta e enterrada.
Não teria sido preferível refazer todo o texto evitando os vários enxertos? Para quê? A continuidade que sofre o documento não se modifica de um dia para o outro. A estratégia global, que não se vislumbra no texto, também não se improvisa. Bruxelas não gostaria de receber fora de tempo um documento essencial. Mas, sobretudo, a necessidade de combater a maior crise do século não se compadeceria nunca com um ano a começar em duodécimos, sem possibilidade de adoptar uma única medida nova de apoio ao emprego, de coordenação com o Plano de Reestruturação e de aproveitar as verbas comunitárias de combate à crise social.
Como reconheceu Marta Temido, “temos pela frente os dias mais importantes das nossas vidas”, mas quem pensava ver esse desafio traduzido em números não o encontrou no documento opaco, confuso, genérico e sobretudo impossível de conseguir interpretar.
O novo ministro não é o primeiro (nem será o último!) a construir o chamado orçamento indecifrável (tudo se compara com tudo e nada do que seria desejável comparar se consegue comparar), mas isso valeu-lhe ouvir como arma de arremesso um número que, de tão irrelevante, nos mostra a pequenez da margem do exercício orçamental.
A transferência orçamental para o SNS face a 2020 resume-se a uns escassos 0,03% de aumento, assim espelhando aquela prioridade essencial nos próximos tempos.
Claro que a esses mais de 10 mil milhões somam-se quase mais dois mil de várias transferências para a saúde, mas comparar este total, como fez em desespero João Leão, “à bazuca de fundos que a UE está disposta a transferir para Portugal nos próximos anos” é um erro populista, inadmissível num professor de economia.
Seja como for, o Orçamento agora aprovado não será o que vai sair do debate na especialidade. E se entrou já como trabalho de patchwork saíra muito provavelmente transformado na mais vulgar manta de retalhos, se não vier já devidamente retalhado. Melhor aqui e ali, mas ainda menos coerente, ainda com menor valia enquanto instrumento de política de combate à crise económica que se avizinha.
E em matéria de défice não há margem para acertos? Diríamos que aí, sim, “almofada” não faltará. Um défice de escassos 4,3% é um objetivo tão ambicioso que só o nosso altíssimo nível de endividamento pode justificar tanta preocupação austeritária. Se tiver que ser maior para salvar a economia e nos salvar da pandemia, seja. E quem souber fazer melhor que atire a primeira pedra entre os nossos parceiros a braços com o mesmo tipo de problema sanitário.
Aqueles 10,8% de probabilidade de sair morto pela Covid (quando se apanha o vírus acima dos 70 ) é um número suficientemente aterrador num país extremamente envelhecido como o nosso. E mesmo que 1,9% pareça bastante abaixo desse limite para a faixa da população activa, também não é.
Quase quatro mil novos casos (3960 mais exactamente!) esta quarta feira nem antes do confinamento aconteceu… os praticamente 271 doentes em cuidados intensivos eram inimagináveis por essa altura.
Quem nos garante que muito em breve os nossos médicos não vão ter de escolher quem salvarão? Então não vai ser altura de fazer contas. Por isso, se estas pecarem por defeito agora não valem a pena grande preocupação. Talvez por isso a instabilidade política presentemente instalada seja, em si mesma, uma nova má notícia.
O Instituto de Saúde Publica da Universidade do Porto admite que dentro de semanas estejamos com sete mil novos casos diários. Aguentamos? Não. Sobretudo se confirmar a hipótese de partida, “se nada for feito”.
Queremos acreditar que o Conselho de Ministros extraordinário de sábado decidirá por cobro a esta subida exponencial, nem que seja à custa de ficarmos ainda mais pobres (se confinados), mas pelo menos vivos. Ou seja, nem que precisemos de nos recolher de novo como já se começa a falar em meia Europa, não vai ser tempo de limpar as armas. Estamos em guerra.
Os orçamentos de guerra valem o que valem. Mas quem manda não pode estar em contínua negociação com as suas próprias tropas e, menos ainda, sob chantagem das mesmas.
Mas uma coisa podemos ter a certeza, o Bloco já desertou do campo de batalha. O que não é mau para o bom funcionamento da democracia. Nenhum Governo é bom sem oposição e o pior defeito do actual Governo é já levar mais de cinco anos de governo sem ela. E, na oposição, o Bloco não é apenas bom, é muito bom. Sabe fazer contas e usá-las como ninguém.
O PS que se cuide porque não pode esperar que Mariana Mortágua leve a honestidade intelectual e académica ao ponto de só comparar o que é comparável, (por exemplo médicos no sistema em Janeiro face ao período homólogo). Minudências quando o próprio João Leão, que reclama cuidados metodológicos à sua colega de academia, não hesita em omitir os dados que realmente interessam e prefere fazer cabazes de números que, em si mesmo, dizem muito pouco ou nada. Quem assim faz não pode levar a mal que lhe façam o mesmo.
Quanto a Rio, já se viu que não vai mudar. Ele que era contra a estratégia de Passos Coelho não achou melhor forma de propor uma alternativa do que listar uma a uma as medidas que constituíam a base da receita que tanto criticava.
A oposição “morna” nos últimos anos vai continuar durante os próximos quatro anos, se acaso o Governo aguentar até final da legislatura. Há estratégias assim, que passam por deixar tudo “em banho Maria”, sem sequer se esforçar por apresentar alternativas, até que o poder lhes caia no colo.
Com Durão Barroso aconteceu. Com Rio, talvez também possa vir a acontecer, embora o mundo esteja pouco dado ao velho rotativismo parlamentar. Costa que se prepare, porque há histórias que se repetem e pode voltar a cair, quem sabe, depois das autárquicas, quando precisar de fazer passar um qualquer “suplementar”.