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Foi o “Boston Globe” que iniciou o processo. A investigação do jornal americano, entretanto adaptada a filme vencedor de seis óscares, começou por recolher dados sobre o padre John Geoghan, que abusou de, pelo menos, 80 crianças, mas acabou por revelar uma situação dramática na arquidiocese de Boston, uma das mais importantes dos Estados Unidos.
Durante décadas, os bispos tinham estado a esconder os casos de que tinham conhecimento de abusos sexuais praticados por padres. Os sacerdotes eram mudados de paróquia ou enviados para fazer terapia e, posteriormente, recolocados ao serviço. Quase invariavelmente, os abusos continuavam.
O caso de Boston espoletou uma onda de novas denúncias. As vítimas foram percebendo que não estavam sozinhas e muitas ganharam força para se queixar. Formaram-se associações. Multiplicaram-se processos jurídicos. Mais do que uma diocese faliu, devido às indemnizações, incluindo a de Boston.
Em 2002, os bispos americanos reuniram-se com o objetivo de definir normas rigorosas para lidar com casos futuros e pôr fim à cultura de encobrimento que, em nome da defesa do bom nome da Igreja, tinha acabado por criar ainda mais escândalo.
O produto final foi a Carta de Dallas. Os dois primeiros artigos respondiam diretamente ao que parecia terem sido as principais falhas. No primeiro, as autoridades eclesiais ficam obrigadas a acolher as vítimas e suas famílias. “A primeira obrigação da Igreja em relação às vítimas é de cura e reconciliação”, lê-se. No segundo artigo, fala-se da estreita colaboração com as autoridades.
No final da reunião, com a carta aprovada, um clérigo apresentou as conclusões. Era o fim do encobrimento, pronunciou, o virar de uma nova página. Esse homem chama-se Theodore McCarrick. Na altura era cardeal, mas, no fim-de-semana passado, perdeu mesmo o estatuto de sacerdote, depois de ter sido dado como provado que abusou de menores e manteve relações homossexuais com vários homens, incluindo seminaristas e jovens padres.
E foi aí que a montanha, que parecia estar a afastar-se no retrovisor, de repente, entrou em erupção. O facto de McCarrick - que foi um dos clérigos mais influentes da Igreja americana - ter sido revelado como um abusador já era mau, mas a notícia foi agravada, em muito, pelo facto de se ter tornado aparente que vários outros bispos já sabiam do seu comportamento e que pelo menos duas das dioceses em que tinha estado chegaram a acordo extrajudicial com padres que diziam ter sido por ele abusados, na condição de que não tornassem públicas as alegações.
Imediatamente, levantou-se a questão de saber como é que aquele homem tinha conseguido ascender na hierarquia eclesiástica a ponto de se tornar cardeal e ocupar a sé da capital dos Estados Unidos.
O escândalo teve consequências em larga escala, nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, uma grande crise de confiança entre os leigos em relação aos seus bispos, que chegou ao ponto de se ter formado uma organização que está a reunir uma equipa de investigadores para analisar todos os cardeais do mundo, formando um dossier sobre cada um.
Também a nível estadual, várias procuradorias aproveitaram o tema para lançar investigações sobre as suas dioceses, obrigando-as a fornecer toda a documentação. Foram publicadas listagens com centenas de nomes de padres que tinham sido credivelmente acusados de abusos.
Mas as cinzas do vulcão também escureceram os céus do Vaticano e a convocação da cimeira que começa na quinta-feira foi uma forma de responder à crise.
Autonomia episcopal
A ironia, em tudo isto, é que a Carta de Dallas que McCarrick apresentou funciona. Pelo menos, os dados disponíveis atualmente apontam nesse sentido. A investigação na Pensilvânia, por exemplo, revelou os nomes de mais de 300 padres acusados de abusos e fez várias manchetes, como é compreensível. Mas é importante perceber que de todos esses casos apenas dois diziam respeito aos últimos 17 anos, desde que a Carta de Dallas entrou em vigor, e mesmo esses tinham sido imediatamente comunicados às autoridades e tratados de forma rigorosa e transparente.
No fundo a nova crise nos Estados Unidos - não obstante a sensação criada entre a população geral - não diz respeito a novos casos de abuso de menores, mas sim ao continuado encobrimento de comportamentos sexuais, por vezes ilegais e sempre imorais, praticados por bispos.
O problema radica no próprio sistema organizativo da Igreja, segundo o qual cada bispo responde diretamente ao Papa e não pode ser responsabilizado pelos seus pares. A Carta de Dallas, tal como outras normas existentes no mundo, são omissas no que diz respeito a abusos praticados por bispos, que apenas podem ser sancionados pela Santa Sé. De facto, todos os casos envolvendo bispos acusados de abuso sexual nos últimos anos têm sido tratados diretamente em Roma e McCarrick não é o único que foi condenado e removido do ministério.
Essa realidade pode mudar? É difícil. No seguimento do caso McCarrick, a Conferência Episcopal dos Estados Unidos tentou aprovar um documento nesse sentido, mas foi travada pelo Vaticano, que pediu que se esperasse pela cimeira que agora começa.
As reações foram mistas, com alguns a dizer que a Roma estava a travar as soluções e outros a dizer que a Santa Sé tinha feito bem, pois o documento em causa era precipitado. O tempo dirá se a cimeira contribui para encontrar uma solução para esta questão.