"O sistema eleitoral americano é muito mais vulnerável do que se pensava"
25-04-2018 - 09:25
 • Elsa Araújo Rodrigues

A relação de Donald Trump com Vladimir Putin começou muito antes da corrida à presidência dos Estados Unidos. No livro "Roleta russa", o jornalista Michael Isikoff explica como essa ligação anterior entre os dois líderes ajudou a moldar a atual interferência russa no sistema eleitoral dos EUA.

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Trump sonhava construir uma torre em Moscovo e tentou “seduzir” Putin para que desse aval ao projeto com o concurso Miss Universo de 2013, que se realizou na capital russa. É uma das ideias fortes do livro “Roleta Russa: A história Interna da guerra de Putin contra a América e a eleição de Donald Trump” [ainda sem edição em português].

No livro, os jornalistas David Corn e Mickael Isikoff descrevem a “obsessão” de Trump com Putin. O antigo empresário acabou por ver o seu projeto imobiliário desmoronar e isso moldou a atual relação entre os governos dos dois países.

Em entrevista à Renascença, Mickael Isikoff revela que o dia 7 outubro de 2016 foi “um dos dias mais disruptivos da política norte-americana das últimas décadas” e também que Trump nunca imaginou que ia tornar-se Presidente dos EUA.

As eleições de 2016 foram um jogo de "roleta russa"? É daí que vem o título do livro?

De certa forma, sim. A roleta russa é um jogo mortal, em que não se sabe quando é que a bala que está no cilindro será disparada. De certa forma, esta foi uma eleição em que ninguém sabia exatamente o que é que os russos tinham planeado, nem quando é que as balas seriam disparadas. No final, o que aconteceu foi que os russos premiram o gatilho e isso teve o efeito de perturbar as presidenciais.

De que forma é que os russos o fizeram, para além do que já sabemos (recurso a "bots" no Twitter e publicações pagas no Facebook)?

Segundo as conclusões da comissão que investiga os laços com a Rússia, foi uma campanha multifacetada baseada em ciberataques. Não só ao Comité Nacional Democrata, mas também a figuras políticas. Os frutos desses ciberataques foram usados numa guerra de informação, na qual documentos e emails foram despejados na esfera pública.

Em simultâneo, o exército de "trolls" de São Petersburgo sub-repticiamente colocava anúncios no Facebook e "bots" no Twitter - todos juntos conseguiram perturbar o processo político nos Estados Unidos.

Quando a Rússia, através da WikiLeaks,começou a divulgar os emails dos democratas, isso levou à demissão da presidente do Comité Democrata e de toda a sua equipa sénior.

A divulgação dos emails aconteceu num dia que se tornou um ponto de viragem.

No livro focamo-nos nesse dia, 7 de outubro, um dos dias mais disruptivos da política norte-americana nas últimas décadas.

Um dia que tem também outro significado…

Sim, é o dia de aniversário de Vladimir Putin. E foi também o dia em que foram divulgados os "emails de Podesta" [os emails enviados a partir da conta pessoal deJohn Podesta, antigo chefe de gabinete da Casa Branca e diretor da campanha presidencial de Hillary Clinton em 2016] pelo WikiLeaks e que mudaram completamente a narrativa da eleição e do debate desse momento em diante.

A partir da revelação desses emails, os russos entraram definitivamente na campanha.

Sim. Alguns dias depois, num debate em St. Louis, todas as perguntas passaram a ser conduzidas em redor daquilo que os russos tinham feito - tanto os ciberataques, como os emails que tornaram públicos. Algo verdadeiramente sem precedentes, nunca tínhamos estado numa situação em que o diálogo político norte-americano estivesse a ser conduzido pelos atos dos serviços de informação de um adversário estrangeiro.

Tudo ter acontecido a 7 de outubro foi apenas uma coincidência?

Esse é um dos muitos mistérios que ainda envolvem este caso. Tudo o que aconteceu, desde os serviços secretos publicarem uma declaração a culpar a Rússia pelo ataque às eleições, ao lançamento do vídeo do "Access Hollywood", com Donald Trump a fazer comentários obscenos sobre as mulheres e depois a publicação dos "emails de Podesta", tudo isso aconteceu tudo no mesmo dia, apenas com algumas horas de intervalo.

Foi tudo por acaso ou foi planeado de alguma forma? Ou será que a revelação dos "emails de Podesta" [que visavam Hillary Clinton] foi antecipada para desviar a atenção do vídeo do "Access Hollywood"? Temos muitas perguntas, mas nenhuma resposta.

No livro aborda uma questão importante: as instituições democráticas dos Estados Unidos são mais vulneráveis do que parecem.

Percebemos que o sistema político americano é muito mais vulnerável do que alguém poderia imaginar, de quão vulnerável é o nosso sistema eleitoral. O que aconteceu durante as eleições é que os russos acederam às bases de dados dos registos eleitorais estaduais, onde constavam as informações pessoais de todos os eleitores. Ninguém conseguiu prever as potenciais consequências de tudo o que os russos poderiam ter feito.

Que outro tipo de coisas poderiam ter feito?

O que deixou muitas pessoas nervosas foi terem percebido que, com acesso à informação dos eleitores, bastava apenas que os russos mudassem os números da Segurança Social de alguns deles. Bastava mudar um dígito e quando as pessoas fossem votar não seriam capazes de registar o seu voto. O potencial de fazer estragos é muito mais vasto do que alguém poderia imaginar.

O que é que o concurso Miss Universo 2013, que decorreu em Moscovo, tem a ver com o resultado das eleições nos EUA em 2016? Foi um concurso de beleza para "conquistar Putin"?

Como escrevemos no livro, um dos principais objetivos de Donald Trump quando voou para Moscovo em novembro de 2013 era encontrar-se com Vladimir Putin.

Trump estava obcecado em conseguir uma reunião com Putin, não conseguia parar de perguntar a toda a gente se Putin iria assistir ao Miss Universo. "Ele já disse alguma coisa? Será possível um encontro?" O que Trump perguntava a todos à sua volta era em que pé estavam as coisas em relação a Putin. No fim, Trump não conseguiu encontrar-se com Putin nessa altura. Um porta-voz ligou-lhe e desculpou-se por não ter sido possível.

Porque é que Trump queria tanto encontrar-se com Putin?

Nos dias em que esteve em Moscovo, por causa do concurso Miss Universo, Trump tinha outra agenda. Queria selar o negócio para construir uma Torre Trump em Moscovo, tinha um parceiro de negócio, um oligarca milionário, que era muito próximo de Putin.

Trump pensava que a reunião com o próprio Putin seria o último passo que o ajudaria a atingir o seu sonho de longa data: construir uma Torre Trump em Moscovo. Mas sabia que para conseguir o selo de aprovação final precisaria de ter a bênção de Putin e por isso é que estava tão obcecado em conseguir reunir-se com Putin, a quem esperava conseguir encantar.

À data, em 2013, o encontro era motivado apenas pelos negócios ou já teria também uma motivação política por trás?

Nesse momento era sobretudo por causa dos negócios - para fazer dinheiro e erguer outro monumento a si próprio.

Em que momento é que a relação de Trump passou dos negócios para a política?

Penso que Trump pensava há muitos anos em concorrer à presidência. Mas o que mostramos no livro é a importância que aquela experiência de Trump, de tentar aquele negócio na Rússia, acabou por influenciar a forma como vê a Rússia e Putin. O que aconteceu é que ele escreveu realmente uma carta de intenções com o objetivo de construir uma Torre Trump em Moscovo, em novembro de 2013. O filho, Donald Trump Jr., ficou encarregue do projeto e a filha, Ivanka Trump, chegou a voar para Moscovo, em fevereiro de 2014, para procurar terrenos onde a torre pudesse ser construída.

Mas o que é que aconteceu nesse mesmo mês? Putin anexou a Crimeia e alterou as fronteiras da Ucrânia. E o que é que a União Europeia e os Estados Unidos fizeram? Impuseram sanções à Rússia e uma das instituições financeiras que foram sancionadas foi um banco russo, detido maioritariamente pelo Estado e que ia financiar a construção da Torre Trump. Depois das sanções terem sido impostas, o projecto de Trump na Rússia desmoronou-se: não conseguiu o financiamento e o sonho de longa data de vir a ter uma torre com o seu nome em Moscovo evaporou-se.

Trump culpa as sanções por não poder realizar esse sonho?

Sim. E estes acontecimentos "pessoais" influenciaram a forma como Trump passou a ver as sanções. Para ele, Obama e o Ocidente mataram o seu negócio com a imposição dessas sanções. Esta é uma das razões pelas quais estava tão relutante em manter as sanções em vigor, ou impor novas, quando se tornou Presidente.

Putin acabou de ser reeleito para um novo mandato. Isso poderá, de alguma forma, ajudar a campanha de Trump para tentar a reeleição em 2020?

Não, porque há muitas cartas de dupla-face a circular. Basta olhar para o que acabou de acontecer na Síria e o ataque com armas químicas, que Trump atribuiu à Rússia. Os acontecimentos têm uma forma curiosa de ditar a agenda.

Fossem quais fossem as esperanças que Trump tinha em relação a negociar com Putin, elas foram postas em causa com coisas como estas. Há muitas cartas "joker" por aí. Sem esquecer que a maior cartada contra Trump pode vir a ser a investigação [do conselheiro especial Robert] Muller e as conclusões que venha a tirar. Tudo indica que a investigação está a ganhar gás.

Trump tem muitos problemas pela frente.

Os problemas legais de Trump estão a crescer. Há um mês e meio, os escritórios dos seus advogados foram passados a pente fino. Trump vai ter de enfrentar muitos problemas legais no futuro.

Quando esteve em Lisboa na Web Summit entrevistou Brad Parscale, que entretanto foi anunciado como diretor da campanha de Trump para 2020. Recordando o que disse sobre ele na altura, Parscale poderá ser uma mais-valia?

Ainda não sabemos, porque desde que eu estive aí já aprendemos tanto sobre a Cambridge Analytica e o ataque russo através das redes sociais. Uma das questões que coloquei na altura a Parscale foi sobre como foi enganado, segundo as suas próprias palavras, por um "bot" russo de quem ele re-publicou um "tweet". Ele e outras pessoas ligadas à campanha de Trump amplificaram a mensagem dos russos através de re-publicações no Twitter.

Brad Parscale disse que não sabia que era um "bot" russo, o que significa que foi um dos que foi manipulados. Ainda há muitas coisas que não sabemos sobre como é que os russos se infiltraram o Facebook, que usos foram dados às informações privadas a que Cambridge Analytica teve acesso e se Brad Parscale esteve no meio disso.

A chamada “investigação russa” vai estar concluída antes de Trump começar a fazer campanha para as presidenciais de 2020?

É difícil dizer. Neste momento, Trump tem outros problemas: as buscas ao gabinete do seu advogado, Michael Cohen, podem tornar-se muito sérias para ele. E para além disso, estamos em ano de eleições para o congresso. Se os democratas retomarem o controlo da Câmara dos Representantes nas intercalares, as hipóteses de Trump vir a conhecer um 'impeachment' vão aumentar muito.

A maioria dos democratas provavelmente vai apoiar resoluções a favor da destituição e, neste momento, isso é uma incógnita ainda maior. Acho que, neste momento, Trump tem coisas mais graves em que pensar do que na reeleição em 2020.

A história da “investigação russa” continua a ser contada, porquê este livro agora?

Este é o primeiro livro que entrelaça a história da Rússia e que apresenta a narrativa de uma forma que as pessoas possam entendê-la.

Há quase dois anos que temos sido constantemente bombardeados com história atrás de história sobre a investigação da Rússia e tem sido muito difícil as pessoas seguirem o fio condutor ou sequer lembrarem-se de como uma nova descoberta tem a ver com a anterior.

O público tem seguido a história da Rússia como uma sucessão de casos, mas o livro mostra que é um processo maior. E no livro contamos a narrativa de forma sequencial, com muitos pequenos detalhes que eram desconhecidos do grande público.

Que tipo de detalhes?

Uma anedota interessante: nesse mesmo dia, na manhã de 7 de outubro, o secretário da Segurança Interna, Jeh Johnson, telefonou a Trump porque estava a fazer o "briefing" a ambos os candidatos presidenciais sobre um furacão que estava prestes a atingir a Flórida. Ligou para dar conta dos planos do Departamento de Segurança Interna para evacuar as zonas na rota do furacão, para retirar e proteger os cidadãos.

Hillary Clinton tinha pedido para ser informada e Jeh Johnson pensou que, se ia dar a informação a Hillary, também teria de a passar a Trump.

Johnson liga para a Torre Trump, em Nova Iorque, e quando Trump atende é muito simpático e amistoso e desfaz-se em elogios. Recordo que Trump estava a falar com um dos homens fortes do gabinete de Barack Obama e, às tantas, diz-lhe: 'Jeh, quando isto tudo acabar, o que é que vais fazer?' Johnson responde: 'Vou regressar para a minha sociedade de advogados em Nova Iorque'. E Trump retruca: 'Quando vieres passa aqui pela Torre Trump e almoçamos!'

Jeh Johnson nem queria acreditar no que estava a ouvir e responde-lhe: 'Sr. Trump, o senhor é candidato à presidência e, nesse caso, o cenário mais provável é que venha a mudar-se para Washington (onde se situa a Casa Branca) e não ficar em Nova Iorque.' Ao que Trump respondeu: 'Ah pois é! Ainda não tinha pensado nisso!'

Foi nesse momento que Jeh Johnson percebeu que Trump nunca imaginou sequer que poderia ser eleito Presidente dos EUA. De certa forma, a campanha presidencial de Trump foi uma espécie de viagem do seu ego ["ego trip"] . E ele próprio, bem como a maioria da América, nunca pensaram que iria acabar essa viagem como Presidente.