Natal, a revolução
23-12-2024 - 12:53
 • Alfredo Teixeira

A biografia do termo «revolução» é um pouco desconcertante.

A biografia do termo «revolução» é um pouco desconcertante. Na Idade Média, o termo habita os saberes astronómicos, descrevendo o carácter cíclico dos movimentos dos corpos celestes. É ainda esse o sentido que encontramos no célebre título de Nicolau Copérnico, «As Revoluções dos Orbes Celestes». No entanto, no século XVII, sobrepõe-se outro sentido, o de mudança disruptiva na dinâmica da história – antes de mais, no sentido político, mas também noutros sentidos. A memória religiosa e cultural do Natal pode acomodar estas duas vias de significação.

Cruzando a narrativa cristã e as festividades do solstício, descobrem-se duas tradições em tensão: de um lado, os rituais cíclicos, que traduzem a representação do tempo como «eterno retorno»; de outro, a celebração judaica e cristã da história, habitada por uma promessa irreversível. O solstício traduz essa experiência dos dias que veem o seu tempo solar dilatar-se, iniciando um ciclo de renascimento. Esta transição astronómica está ligada a medos ancestrais e terá favorecido a emergência de cultos solares. Entre os diversos cultos sincréticos que o Cristianismo Antigo conheceu, destacam-se esses ritos solares, favorecidos pela religião imperial. Por isso, a Igreja de Roma procurou inscrever nesse contexto a rememoração do nascimento de Jesus – o messias que Malaquias tinha anunciado como o «sol de justiça», a «luz do mundo» segundo Isaías. Este tópico está, aliás, presente nos discursos cristãos: Ambrósio de Milão comenta o nascimento de Jesus como o aparecimento do «novo sol»; Agostinho, nos seus sermões, exorta a que os cristãos não adorem o sol, mas antes aquele que o criou. A recorrência deste tópico de pregação indicia a popularidade destes cultos, e a necessidade, para os cristãos, da sua re-significação. O Natal é também um acontecimento de linguagem.

Assim, podemos dizer que o Natal «revoluciona» as linguagens sobre Deus – não no sentido de movimento cíclico, mas como emergência disruptiva. Na narrativa cristã, a vinda de Deus ao mundo não acontece sob o signo do juízo devastador, mas sob a figura da hospitalidade. Deus, exilando-se da órbita dos impérios, renuncia ao claustro do «unicamente» Deus, para habitar a casa da humanidade. O criador aceita a condição de criatura e abdica da condição de indecifrável e separado. Das palavras da grandeza de Deus, passamos à imagem do seu «abaixamento». Da imagem da imutabilidade de Deus, passamos à narrativa de um Deus que «se faz» humanidade. Das sentenças acerca do Deus absoluto, passamos à cantilena de um Deus frágil. O imaginário devocional português mostrou-se muito sensível a esta poética do Deus que aceita a condição de recém-nascido. Deste modo, canta-se a humanidade como berço de Deus (esse canto só pode ser um embalo).

O imaginário dominante é, atualmente, marcado pelas sequelas da sociedade do consumo do século XX. Na Inglaterra vitoriana do século XIX, o Natal incorporou a celebração burguesa das virtudes públicas, do sucesso e do bem-estar económico das famílias. A sociedade, atingida pelas mudanças brutais provocadas pela industrialização, recolhe-se no lar, reconstruindo aí uma narrativa de harmonia (leiam-se os contos de Charles Dickens). Transportado por migrantes, nas primeiras décadas do século XIX, feito herói em Nova Iorque, o último «descendente» de São Nicolau, o Pai Natal, tornar-se-á, a partir da década de 1920, uma atração nos grandes armazéns. Regressou, com o plano Marshall, à Europa, confundindo-se com a nova religião do mercado e da abundância.

Subsistiram alguns lugares de resistência. No Natal mediterrânico, aquele traço particular do cristianismo, a humanização de Deus, permitiu que as representações do divino facilmente se ancorassem na escala do humano, doméstico e social, renovando a aliança entre a história santa e o drama humano – o presépio é o emblema mais evidente desta transcrição miniatural. As narrativas que exprimem a celebração do Menino expõem uma religiosidade de índole doméstica, atualizadora da linhagem dos afetos, nas casas e nos lugares comunitários. O Natal carrega os significados da religião do lar, nos seus dramas e encantamentos. Na música portuguesa de Natal e na literatura oral, que podemos encontrar nas recolhas etnográficas, descobre-se o rasto deste Natal ao sul, lugar onde se miniaturiza a história santa e se humaniza o divino, celebrando a família, a maternidade e a infância – o álbum «Ó Meu Menino», gravado pelo Ensemble São Tomás de Aquino, recentemente disponibilizado nas diversas plataformas digitais, é um bom testemunho deste arquivo, re-imaginado por diversos compositores portugueses dos séculos XX e XXI.

Que interessante seria se as instituições culturais do nosso país se responsabilizassem por nos proporcionar, a cada ano, neste tempo do Natal, a visitação de obras musicais como a Primeira e a Segunda Cantata de Natal de Fernando Lopes Graça, entre outras, que recolhem de forma notável esta memória singular de um Deus «humanado».