“O grande problema é a falta de dinheiro.” Podia ser uma declaração real de um professor, mas é uma das primeiras deixas da personagem principal de “Abbott Elementary”, série de comédia em estilo “mockumentary” sobre o corpo docente de uma escola primária da cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos da América.
A série, que em Portugal pode ser vista no Disney+, retrata a vida profissional dos professores da escola pública Willard R. Abbott. Alguns mais velhos, outros mais novos, isto “se não acabarem por sair”, como admite Janine Teagues – personagem interpretada pela atriz e humorista Quinta Brunson, que há poucos anos escrevia webséries e curtas-metragens para o site “Buzzfeed” e que agora é a feliz criadora de uma das séries de maior sucesso da televisão norte-americana.
Para criar a série, Brunson inspirou-se na mãe, que foi educadora de infância em Filadélfia. O nome "Abbott" é de uma professora que a marcou, quando andava no 6.º ano. A vida inspirou a ficção e, alcançado o sucesso, a ficção deu mais uma volta: Quinta Brunson revelou que parte dos fundos para o marketing da série foi alocada para doar material a professores nos EUA.
Um dos segredos de "Abbott Elementary", sucessora de séries como "The Office" e "Parks and Recreation", é que os alunos são pouco mais do que figurantes e, ao contrário do que é habitual, rimo-nos com os professores e não deles (um bocadinho deles, também).
Janine é a novata cujo perpétuo otimismo não esmoreceu. Encontra muitos obstáculos na demanda de fazer o melhor pelos seus alunos, porém, ao fim de cada episódio, lá recebe a devida recompensa e consegue inspirar também algum otimismo nos outros professores.
Carreiras mal pagas, desistências frequentes, poucas ou nenhumas perspetivas de progressão na carreira... Os dramas dos professores substitutos, diretores pouco qualificados, está lá tudo – e mais ainda: confronto geracional, falta de recursos e equipamentos que não funcionam, excesso de burocracia ou até a forma como os professores têm, tantas vezes, de ir além da sua profissão e de apoiar os alunos de formas para as quais não estão, sequer, qualificados.
Os primeiros minutos do episódio-piloto deixam claro que há muitos pontos de contacto entre os problemas existentes nos EUA e os protestos dos profissionais de educação em Portugal.
“Professores de uma escola como a Abbott têm de conseguir fazer de tudo. Somos administradores, somos segurança social, somos psicólogos, somos segundos pais, por vezes até somos os primeiros pais. Porquê? Pelo dinheiro não é de certeza.”
Esta citação de “Abbott Elementary” – da professora Barbara Howard, que granjeou à atriz Sheryl Lee Ralph um Emmy de melhor atriz secundária de comédia (foi a primeira mulher negra a vencer o prémio em 35 anos) – reflete algumas das queixas e exigências feitas pelos professores portugueses ao longo das greves que já duram desde dezembro.
Professores e pessoal não docente reivindicam melhores condições de trabalho e salariais, além de se manifestarem contra os serviços mínimos nas escolas durante a paralisação.
Menos de um em cada 10 professores portugueses sente-se satisfeito com o salário que aufere, segundo um estudo da Eurydice, da OCDE. Já os assistentes operacionais com 25 anos de serviço continuam a ganhar o mesmo quando entraram ao serviço: o salário mínimo nacional.
Os sindicatos revindicam várias medidas, como um aumento salarial de 120 euros para todos os profissionais do setor, ou seja, professores e pessoal não docente; a recuperação dos mais de seis anos de contagem de tempo de serviço congelado durante a Troika; o fim das quotas e vagas de acesso aos quinto e sétimo escalões; e melhores condições de trabalho para o pessoal não docente.
Por outro lado, posicionam-se contra a proposta do novo modelo de recrutamento e colocação de professores que está a ser negociado com o Ministério da Educação.
Os temas continuam a ser explorados durante a greve dos professores, que dura até 8 de fevereiro, e, de um modo mais geral na televisão.
Não é por acaso que “Abbott Elementary”, que vai na segunda temporada, é uma das séries mais vistas nos EUA. Nomeada para vários prémios, venceu recentemente três Emmy e três Globos de Ouro. O elenco soma elogios (tem a comediante Janelle James ou a veterana Lisa Ann Walter entre os principais papéis), mas o mérito é sobretudo de Quinta Brunson, autora, guionista, produtora e atriz principal da série.
A miúda viral agora sensação dos media "mainstream" nos EUA diz que, no humor, "quanto mais específico fores, mais universal te tornas". E é por isso que facilmente se consegue imaginar algumas das cenas a acontecer numa qualquer escola em Chaves ou em Vila Real de Santo António.
Ali estão todos os problemas de que os professores se queixam, todos os dias, com o natural exagero de uma série de comédia. E a par disso, revelam-se também as pequenas alegrias da profissão: do sentimento de vitória quando algo corre bem às tiradas hilariantes de alguns alunos.
"A beleza [dos professores] é alguém ser tão resiliente por uma profissão que é tão mal paga e tão desvalorizada, porque o faz sentir-se realizado", disse Brunson, numa entrevista à televisão NPR.
Palavras que explicam bem o sucesso de "Abbott Elementary". Acima de tudo, e numa altura em que a greve dos professores é preocupação em Portugal, faz refletir fazendo rir e, mais do que a comédia, tem como principal arma a empatia.