O documentário é a história de dois homens, Wade Robson e James Safechuck, que acusam Michael Jackson de alegadamente ter abusado sexualmente deles enquanto crianças. O filme de Dan Reed, lançado este mês, descreve a relação das alegadas vítimas com “rei da Pop”.
O documentário não ouve o lado da família de Michael Jackson (que faleceu em 2009), somente o lado das alegadas vítimas.
Luís Santos justifica com o facto do documentário não ser um formato jornalístico e, por isso, não obriga a ouvir os dois lados.
No entanto, o professor de Comunicação admite ter “muita dificuldade em acreditar que o que eles dizem possa ser falso”, já que as presumíveis vítimas apresentam “de forma crua” fragilidades, como o facto de terem defendido o artista em tribunal (Michael Jackson já tinha sido acusado de abusos sexuais em 1993, mas tanto Wade Robson como James Safechuck defenderam o artista em tribunal).
Luís Santos ressalva, contudo, que pode estar a ser condicionado” por um excelente trabalho cinematográfico”. Por outro lado, lembra, ainda, como a construção da celebridade “nos afasta do real, do que elas [as celebridades] são”.
O importante em “Leaving Neverland” não é ser o fim, mas sim “o princípio de uma investigação: era importante ouvir outras opiniões, mas ter trabalho jornalístico também sobre a questão da construção da celebridade”. Luís Santos sublinha também que o documentário “assume um olhar sobre uma situação” e o realizador terá deliberadamente decidido contar apenas a história daqueles dois homens, colocando-os no centro do trabalho e não o Michael Jackson. Poderá ter sido, acrescenta, “uma forma de se proteger das críticas que estão aí”.
Boicote a Michael Jackson. Louis Vuitton segue rádios e Simpsons e retira parte da coleção de verão
O facto das acusações só terem sido feitas 20 anos é um fator de dúvida quanto à veracidade dos relatos. Pedro Strecht lembra que “o que temos é palavra contra palavra”, sendo que é mais fácil “destruir” a palavra da criança do que a do abusador. Porém, ao divulgar os abusos, cria-se um efeito “iceberg”, ou seja, “se duas estão a falar disto, 10 ou 20 foram abusadas em situação semelhante”. O psiquiatra lembra que os abusadores conseguem enredar as crianças e as famílias, normalmente com coações e com o medo.
Strecht recorda mesmo o processo Casa Pia de Lisboa quando “uma mãe só falou quando deixaram de pagar para estar calada”.
Questionado sobre um eventual quadro de negligência das famílias, ou até de conivência, o pedopsiquiatra lembra que “estas situações de também acontecem debaixo de tetos familiares”. Reconhecendo que o deslumbramento com a maior estrela do espetáculo não justifica tudo, Pedro Strecht alerta que os abusadores têm uma capacidade manipuladora levando “as famílias a fazerem um esforço muito grande de negação”. E isso será, diz, mais fácil quando estamos perante alguém sobejamente conhecido.
Neste ponto, Ângelo Fernandes considera, por seu turno, que a acusação “é mais difícil quando confiamos em alguém que ajuda a família”.
O fundador da Associação Quebrar o Silêncio sublinha, por outro lado, o contexto em que este documentário surge, lembrando que os abusos não eram debatidos nos anos 80, 90. Hoje, acrescenta, fala-se muitos dos direitos das crianças, e “em poucos anos, evoluímos muito”.
Quanto à questão se é possível separar o homem da obra, Luís Santos lembra a importância cultural de Michael Jackson e que durante décadas o artista foi acarinhado apesar das suspeitas.
Sublinhando na necessidade de afastar um quadro de revisionismo histórico-cultural, o professor da Universidade do Minho reconhece desconforto perceber que os relatos podem ser verdade, apesar de ficar “mais consciente da realidade”, remata.
Já Ângelo Fernandes diz ser uma “uma reflexão que cada um deve fazer individualmente”, para concluir não ser possível ignorar as revelações quando consumimos música de Michael Jackson.