A fuga em frente de Centeno
09-07-2020 - 18:31

Foi constrangedor assistir às explicações de Centeno na audição parlamentar não vinculativa, para que se cumprisse o pró-forma de um aval parlamentar, à sua nomeação como novo Governador do banco central.

Centeno deixou, esta quinta-feira, o Eurogrupo e dirige-se em marcha acelerada para o Banco de Portugal de onde saiu como um prestigiado técnico, possivelmente o melhor conhecedor do estado da economia portuguesa ao serviço do departamento de estudos da instituição que funcionava às mil maravilhas quando lá estava. E assim continuou a funcionar. Somou tantos sucessos, desde aí, que nada faria prever um regresso, à sede do Banco, sob suspeita que lhe ofusca o brilho do reinício da carreira na supervisão. Quem muito quer, tudo perde, avisa o povo.

É provavelmente injusto, mas o que mais espanta é que apenas o próprio Centeno e António Costa, levando por arrasto o Partido Socialista, onde as vozes divergentes devem, como aconselhou esta semana Carlos César, na Renascença, saber esperar “sentadas” (e de preferência “em silêncio”, acrescento eu), não consigam, ou não queiram, ver esse óbvio ululante.

Tudo porquê? Qual o problema do ex-ministro passar a governador? Centeno empenhou o seu próprio prestígio e fugiu do Governo para agarrar “um sonho”, pequeno demais para um homem que se mostrou em tanta coisa, tão grande, ou pior ainda, para tirar desforra de um incidente menor (a perda de um concurso interno do próprio banco) que o engenho da actuação nas finanças já devia ter apagado. Nunca saberemos ao certo.

Foi constrangedor assistir às explicações de Centeno na audição parlamentar não vinculativa, para que se cumprisse o pró-forma de um aval parlamentar, à sua nomeação como novo Governador do banco central. Sabendo-se que o Parlamento não teria possibilidade de rejeitar o nome proposto por Costa e com um pré-acordo publicamente conhecido da presidência da República, a presença de Centeno foi, afinal, um pequeno momento dispensável de quase humilhação.

Sem outros argumentos Centeno acabou a combater a existência de múltiplos e prováveis conflitos de interesse entre a sua nova função e a anterior, admitindo de forma desarmante que “com tanta incompatibilidade seria difícil encontrar qualquer emprego em Portugal”. Mesmo que o fosse o ex-ministro não se deu conta que o problema, em análise, se centrava em saber o que seria melhor para o interesse nacional. Não em escrutinar as suas eventuais possibilidades de trabalho (não cabe ao Estado assegurar o emprego futuro para ex-ministros e, se é essa uma legítima preocupação, talvez esteja na hora de voltar a optar pelas pensões vitalícias que surgiram, exactamente, para compensar os anos dedicados à causa pública e cujo fim ocorreu por razões meramente populares/populistas).

A nível parlamentar não havia, em rigor, nenhum mecanismo que pudesse travar a ida do ex-ministro para o Banco de Portugal e o sinal político que se podia enviar já estava esvaziado pelo acordo em atrasar a votação da nova lei da nomeação dos supervisores. Mesmo assim, dispensava-se a pré-anunciada anuência de Rui Rio em socorro do PS. Teoricamente contra a existência da porta giratória o líder do PSD disse logo que não gostava de leis “à medida” e por isso não impediria a passagem de Centeno para o Banco, se essa fosse a escolha do Governo.

Em mais de trinta anos de jornalismo confesso que nunca vi nada assim. Não se trata de um apoio parlamentar confesso e assumido ao estilo “bloco central”, mas a verdade é que sempre que Rio parece ir dar um murro na mesa e dizer que discorda do PS há sempre qualquer coisa que lhe trava o movimento e justifica um acordo menor, um deixar passar, um “é a última vez”, uma derradeira oportunidade ou um interesse público e nacional que o força ao acordo ou lhe fornece a desculpa expectável. Se bastar abster-se, abstém-se. Se precisar de votar a favor, também o faz. É uma espécie de Frei Tomás compulsivo. Na lógica do vejam como eu discordo mas faço. Desta, foi de novo, assim.

O facto de João Talone, Luís Nazaré, Francisco Louçã e Murteira Nabo terem colocado à disposição os seus lugares no Conselho do Banco de Portugal, para o qual foram nomeados pelo ex-ministro, é apenas mais um pequeno sinal de que a passagem de um lado para o outro gera óbvio desconforto. Pode-se dizer que não faziam “nada” e no Conselho de Supervisão com “poderes reais” ainda ninguém se demitiu, mas não é garantido que não possa vir ainda a acontecer.

O PAN, por uma vez, teve uma iniciativa política, de fundo, que não metia cães, nem gatos, nem outra bicharada. Decidiu propor um novo conjunto de medidas para travar a confusão entre a ex-tutela e o ex-tutelado, impondo que o novo governador não pudesse vir, como no passado das finanças para o Banco Central. O período de nojo fixado era de 5 anos (tão excessivo que fez perigar a iniciativa) e conseguiu, apesar disso, o apoio de todas as bancadas com excepção do PS. Em sede de especialidade a questão do tempo deveria depois ser discutida.

Logo se desencadeou uma vozearia entre políticos, comentadores, ex-políticos e juristas. A lei que visava obviamente travar o notório desejo de Centeno em passar directamente de um gabinete para o outro (aproveitando o fim do mandato de Carlos Costa) foi considerada uma lei à medida, violando o princípio básico de que a lei deve ser geral e abstracta.

A unanimidade da oposição mostrava o racional da iniciativa entre as anteriores passagens do terreiro do Paço para a rua do Comércio tudo mudou o mundo financeiro, os poderes do BCE e do Banco de Portugal, as suas competências, as exigências de uma regulação independente e o facto do actual ministro ter sido obrigado a agir sobre problemas da Banca que agora terá de herdar e resolver numa óptica não governamental. Mesmo assim, Rui Rio antecipou-se a dizer que não se importaria de atrasar a aprovação da nova lei para que esta não travasse a nomeação que o novo texto pretendia inviabilizar.

A Lei “Centeno” foi substituída pelo projecto de lei do “pós- Centeno”, ou seja, o que devia evitar um problema concreto que nos iria cair em cima no futuro, passou a ser apenas um mero instrumento para resolução futura de um problema que se vai primeiro deixar criar. Deve ser a isto que o povo chama a lógica da batata.

E o que se esperava que Centeno fizesse se o bom senso andasse a par com a sua capacidade técnica? Abandonasse de livre vontade a corrida. Nada, deixou a batata quente da pior crise do século a queimar as mãos do secretário de Estado do Orçamento promovido a ministro e ei-lo, de partida, com um excedente orçamental de 0,2 em 2019 e uma previsão de défice de quase 7 por cento este ano, segundo os últimos dados da CE.

A economia ficará este ano mais ou menos assim: um desemprego real a aproximar-se dos 14 por cento e a queda do produto a atingir quase 10 por cento num único ano. Uma coisa que não se viu nem na crise de 1929. Como a recessão suspendeu a aplicação das regras fixadas para tempos normais, nem o esforço feito através de cativações e congéneres até aqui nos servirá de muito. Para cúmulo, deixando de ser ministro e passando a Governador, lá se vai a nossa voz privilegiada em Bruxelas a seis meses de começar a presidência portuguesa. Bem achado.

A crise do sistema bancário não está resolvida e a das dívidas soberanas também não. Quanto às nacionalizações, não se sabe sequer quanto nos custam e ainda menos se vão ficar por aqui.

Carlos Costa sai arrependido da precipitação com que pactuou na resolução do BES e na não menos desastrada venda do Novo Banco. Um caso de polícia e outro de subestimação do impacto sistémico do que restava do grupo. Deve-se-lhe, no entanto, e por justiça, reconhecer a coragem de ter enfrentado o Dono Disto Tudo quando ele ainda fazia “tremer as pernas “ a quase toda a nossa classe política e empresarial (excepção feita a Passos Coelho!). Acabou o governador por agir tarde? É verdade, mas quem por esses tempos acreditava que Ricardo Salgado não agiria sempre como o “Senhor” , que toda a vida aparentara ser, e em que a família e o país confiavam quase cegamente?

O mesmo DDT que fazia frente a todos os seus pares, acabaria a, alegadamente, falsificar contabilidades e a desviar dinheiro para vulgares off-shores, como um qualquer padrinho. Alguns viram antes. O Público fartou-se de avisar. Carlos Costa preferiu não ver? Ou temeu pelos efeitos, em cadeia, em todo o sistema cuja estabilidade lhe estava confiada? Dificilmente saberemos.

Quem está convencido, como ele, que não podia fazer nada, acaba em rigor, por não o poder fazer. Os poderes de supervisão assemelham-se muito aos presidenciais. Ou se exercem e crescem, ou se perdem na inacção e acabam por morrer. Centeno saberá exactamente que são muitos os seus novos poderes e não hesitará em exercê-los. Nesse ponto, talvez António Costa ainda se venha a arrepender da nomeação.

Mário Centeno já deve saber o que quer fazer a seguir, é bom que Costa vá também pensando nisso. Às vezes os países ficam subitamente pequenos.