A Europa ainda precisa dela. A Alemanha talvez não. A mensagem deixada por Merkel aos alemães é essa mesmo: não voltará a ser candidata à liderança da CDU, o partido democrata Cristão alemão que ao longo do último ano e meio não parou de perder votos, mas aceita ficar chanceler, até 2021, o final do seu atual mandato. Porquê dizê-lo agora? Merkel percebeu que a decisão mais humanista da sua carreira foi provavelmente a melhor para perder eleitorado. A mulher de ferro que em Portugal personificou a frieza e arrogância da “troika” dos países ricos do Norte contra os países do Sul abriu com uma humanidade inesperada as portas da Alemanha aos refugiados. Foi o princípio do fim.
Quase sempre agir em consciência tem custos. Para Merkel, o custo estava calculado, mas os dados já conhecidos das eleições estaduais deste Outubro (Baviera e Hesse) mostram que afinal os custos foram ainda mais altos e lhe anteciparam o “fim”. Depois de quase 14 anos à frente da chancelaria Merkel propõe-se ficar ainda mais um ano e meio até à sua substituição na liderança do Partido, mas nem isso está garantido. Dentro da CDU, a formação democrata cristã a que pertence, há já quem espreite a sua hora e esteja demasiado cansado de assistir ao crescendo de importância da formação de extrema direita (Alternativa para a Alemanha) de braços cruzados. É esse partido de extrema-direita que tem capitalizado o descontentamento suscitado pela abertura, aos refugiados e exilados. Ampliando os efeitos de uma explosão que os “media” continuam a ampliar, mesmo que os números a desmintam.
Nos últimos meses a catástrofe eleitoral da CDU tem vindo a concretizar-se a ritmo acelerado: primeiro foi a Baviera há escassas duas semanas (onde a formação irmã, a União Social Cristã sofreu uma derrota histórica), esta semana foi o Hesse, onde a vitória da própria CDU teve o sabor de uma derrota particularmente amarga: agora a extrema direita está representada em todos os 16 parlamentos regionais e no Estado onde domina a praça financeira de Frankfurt já tem quase 13 por cento de votantes . A CDU ganhou ali, neste domingo, mas os seus 27 por cento representam menos dez pontos percentuais do que os obtidos em 2013, e os parceiros social democratas do SPD ficaram-se abaixo dos 20 por cento e admitem repensar brevemente se não lhes vale mais passar à oposição em vez de sofrer os custos do governo.
Em rigor, as estaduais de outubro são só mais um dado a confirmar a crise dos chamados partidos moderados. Tudo começou com a perda de maioria nas eleições federais de 2017 da própria CDU/CSU. Nada de muito dramático, não fora ter-se seguido um período arrastado de quase seis meses de negociações internas, na mera tentativa de formar um governo minimamente estável - apesar do número enorme de partidos convocados e que compõem a atual “Grande Coligação” no poder. O executivo, uma vez formado, teve a sua primeira crise imediatamente a seguir com a ameaça de demissão do ministro do interior (líder da CSU, partido irmão da CDU da chefe do Governo). Horst Seehofer exigia um acordo a nível europeu para que a Alemanha deixasse de suportar sozinha o custo do acolhimento de milhares de requisitantes de asilo, mas Merkel o mais que conseguiu na última cimeira foi meia dúzia de “centros de contenção” espalhados por vários países.
O pico da crise dos refugiados registado em 2015 (quando a Europa recebeu 1,3 milhões de pedidos de asilo 800 mil dos quais dirigidos à Alemanha) caiu brutalmente nos anos seguintes, mas a pressão do chamado grupo de Visegrado (Polónia, Hungria, Republica Checa e Eslováquia) a somar à vitória da extrema-direita italiana, voltaram a colocar no último Verão a questão da repartição dos custos da política de migração entre os 28. Merkel, em Bruxelas, não conseguiu grandes vitórias e ainda permanece debaixo de fogo.
À crise da migração somou-se, na frente externa, uma mudança radical da política norte-americana com o que isso significa de desafio acrescido para a criação de uma defesa europeia autónoma e de ameaça à principal indústria exportadora ( a automóvel) em matéria de guerra-comercial.
A NATO está cada vez menos confiável e os países histórica e geograficamente próximos da Rússia olham a Aliança com ainda menor confiança. A entrada da China no grupo dos negociadores diretos com o imprevisível senhor Trump e as novidades inesperadas na questão norte-coreana não ajudam a consolidar a ideia do peso decisivo da Europa em questões geoestratégicas, uma área onde a própria Alemanha parte com atraso. Tal como na questão tecnológica ou no domínio do novo mundo digital, Berlim confronta-se com uma crise do seu poder “económico- comercial”. As áreas europeias onde joga a sua influência - como na união bancária, a reforma do Euro e a repartição orçamental - estão todas em risco de se ficarem a meio da ponte.
Para cúmulo a ajuda de Draghi na consolidação e estabilização da crise do euro pode estar a esgotar-se. A política monetária expansionista onde ele tem jogado literalmente todas as fichas tem fim anunciado e não é certo que o próprio Governo Italiano, (populista/de extrema-direita) não possa ainda deitar tudo a perder relançando as taxas de juro numa nova subida que irá mais uma vez arrastar as taxas de juro de países periféricos como Portugal. Se isto acontecer não haverá muito a fazer, que possa impedir o regresso da crise das dívidas soberanas.
Perante dois testes perdidos (Baviera e Hesse) Merkel preferiu desinteressar-se já do próximo teste apontado pela maioria dos analistas (o congresso de novembro da CSU), onde mais uma vez o líder do partido “irmão” e ministro do interior poderia dramatizar as divergências no seio da grande coligação de que faz parte em matéria de emigração, propondo a saída da coligação. Por outro lado, já nem se porá a questão do último desafio: o congresso de 8 e 9 de dezembro, em Hamburgo da própria CDU. Anunciando desde já que não é candidata à reeleição, e no pós 2021 não se recanditará a chanceler não terá se suportar análises sobre quantos votos “sobraram” ou quantos minutos de palmas “perdeu”. Em contrapartida força os concorrentes internos a saírem da “toca” antes do tempo previsto por cada um deles clarificando propostas e apresentando alternativas.
Hoje os jornais já falam da possibilidade de sucessão por Annegret Kramp-Karrenbauer (reconhecida como a preferida da chanceler), que é sua apoiante na política de imigração e considerada uma solução de continuidade. Mas o atual ministro da saúde é outra hipótese possível. Essa, traria a CDU para um campo muito próximo da Alternativa para a Alemanha (AfD), recolocando o partido muito mais à direita.
Para a Europa, pelo contrário, o tempo de saída de Merkel não seria idealmente este. Mesmo que só saia em 2021, é bem provável que isso seja considerado cedo demais. Não será certamente Macron a bater com o punho na mesa em qualquer cimeira com Trump, Putin, Jiaoping ou Kim Jong Woon . Talvez nem Merkel nos chegue. A política tem destas ironias.