SEF. “Qualquer português sente perfurar o coração e a alma com a notícia hedionda do que sucedeu no aeroporto”
21-12-2020 - 07:21
 • Eunice Lourenço

D. Rui Valério, bispo das Forças Armadas e das forças de segurança, apela a um maior reconhecimento do papel dos militares na sociedade portuguesa. Em entrevista à Renascença, diz que a Igreja tem de voltar a abrir portas e janelas para ir ao encontro de todos os homens e mulheres.

Bispo das Forças Armadas e das forças de segurança, D. Rui Valério faz 56 anos na noite de Natal e acredita que os portugueses vão viver o período natalício com responsabilidade e altruísmo. Defende que as Forças Armadas têm tido um papel essencial na resposta à pandemia e têm muito a ensinar no pós-pandemia, que olha com esperança.

Em entrevista à Renascença, fala com notório orgulho do agente da PSP que morreu em Évora a defender uma mulher vítima de violência. Ali viu Portugal. A mesma nação que considera posta em causa na morte do cidadão ucraniano morto nas instalações do Serviço de Estrangeiro e Fronteiras, que condena de forma veemente.


Onde é que acha que Deus escolheria nascer nesta altura?

Antes de mais, Deus escolheria nascer no coração de cada homem e mulher de boa vontade, porque é aí em primeiro lugar que ele encarna, se torna criança e, se esse coração iluminado e animado por uma esperança profunda, no sentido de que efetivamente Deus vem como veio há 2000 anos, para nos trazer a salvação, e sabendo que nós hoje, necessitados tanto e tão profundamente de salvação, seja uma salvação que nos liberte deste sentimentos de vulnerabilidade e de depressão que estamos a percorrer, seja libertar-nos dessa perceção de um certo receio que todos nós sentimos. Então, ele vem para nascer, para se fazer homem na vida e no coração e cada pessoa, de cada ser humano.

Mas, depois, iria também querer renascer naquelas novas periferias, como há 2000 anos nasceu, longe da comodidade da estalagem, da comodidade da povoação, da comodidade e dos aconchegos, fora de uma comunidade, para ir nascer numa manjedoura, algures nas periferias de Belém.

Também hoje, nós, como o Papa Francisco tem sublinhado e tem recordado tanto assiduamente, vivemos nesta sociedade e nesta cultura que ele identifica como de descarte e que tem produzido muitas periferias e Deus, certamente, iria também nascer aí.

Mas desejo que Deus nasça e renasça e que pronuncie o seu Verbo, que gere a sua palavra no coração e na vida de cada homem e de mulher.

Falou de tempos de medo e até de depressão que vivemos. A mensagem da Conferência Episcopal Portuguesa para o Natal fala na necessidade de "sonhar para a frente”, num sonho proativo. Sente isto muito nas pessoas com que contacta: a necessidade de fugir de todas estas circunstâncias e agarrar alguma esperança?

Não haja dúvida de que a pandemia para nós é uma cosia estranha; não faz parte do nosso ADN vivermos sob a ameaça seja do que for e é natural que, do coração e da alma do ser humano, brote exatamente este impulso para construir e abrir um amanhã diferente.

Não é apenas o resultado de um desejo piedoso em que nós ficamos numa expetativa do 'vamos ver o que acontece'. O que tenho verificado e através do exemplo verdadeiramente referencial que muitas nações, entre as quais Portugal, têm dado de acatar as indicações e se revela como nós estamos a ser proactivos, ou seja estamos a enfrentar a pandemia com responsabilidade e com esperança.

Não é só porque temos um devoto desejo de que esta tempestade, como a descreve o Papa Francisco – eu também gosto muito da expressão noite escura dos nossos passos e da história – não é só este devoto desejo de que isto passe depressa. A esperança é quando nos comprometemos e nos sentimos envolvidos e chamados a construir, a trabalhar, a colaborar para mudar o rumo da história, para trilhar um caminho de saída, para abrir uma porta e uma janela.

E é isso que está a acontecer, de vários modos, de várias maneiras com aqueles pequenos gestos de toda a população, com naturalidade, colocar a máscara, respeitar o distanciamento, acatar as orientações de limites ao ajuntamento de pessoas. Isso é um envolvimento, isso é fruto da nossa responsabilidade. Isto é o cidadão a construir a sociedade e o mundo que quer para si.

E acredita que esse sentido de responsabilidade vai vigorar no Natal e vai levar as pessoas a terem os cuidados necessários?

Então não vai?!? Acredito firmemente nisso, até porque – repare – esta época ficará para a posteridade descrita e retratada num símbolo que é a máscara. Poderemos esquecer muito do que estamos a viver, do que foi 2020. No entanto, há uma coisa que nunca mais esqueceremos: foi o tempo da máscara.

E, curiosamente, a máscara mais do que ser um utensílio de autoproteção, é um utensílio de proteção do outro, de proteção do 'tu'. A pessoa, inconscientemente, quando está a colocar a máscara é para proteger o outro. E quando há este sentido de altruísmo há esperança, há vida. E, portanto, estou muito tranquilo relativamente a isso. As mesmas pessoas que, com naturalidade e facilidade, usam esta ferramenta de altruísmo, no Natal continuarão a trilhar o mesmo caminho.

Que desafio e que limitações é que toda esta circunstância veio trazer ao acompanhamento das Forças Armadas e das forças de segurança?

Em primeiro lugar, há uma constatação que fazemos, antes de ir aos desafios: as Forças Armadas revelaram-se como um dos pilares da nação. Se efetivamente estamos a atravessar uma tempestade e se Portugal vamos supor é uma barca que está a navegar nessa tempestade ela não afundou, ela não se voltou porque tem aqui uma âncora fundamental que é a Igreja – muitas instituições de mulheres e homens de boa vontade dedicadas ao bem comum; mas porque temos aí também as Forças Armadas e as forças de segurança.

Esta pandemia veio pôr a descoberto o quanto elas são essenciais para a vida da nação, em várias frentes. Em primeiro lugar, porque sempre que não havia mais ninguém, não havia mais nenhuma instituição, que não havia mais nada a fazer, as Forças Armadas apareciam, seja para transportar doentes, seja para erguer tendas de acolhimento, seja para desinfetar espaços, seja para proteger e acompanhar os doentes. Ainda há uma semana, estive nas nossas instituições hospitalares onde acolhemos doentes que estão a passar pela pandemia.

E também para apoiar e reorganizar lares ...

Em tudo! Quando, aparentemente, tudo tinha dado o que havia para dar, entraram as Forças Armadas e forças de segurança e revelaram-se como um dos pilares essenciais. E não nos esqueçamos que as Forças Armadas estão altamente empenhadas já ao nível científico de progresso em termos de ventiladores, de máscaras, de álcool gel.

As Forças Armadas são um todo que podemos dizer que estão presentes em todas as etapas do caminho que se está a fazer rumo ao confronto com a pandemia.

E também vão ter um papel importante na vacinação

Aí vai ser um papel incontornável. Fiquei muito tocado com a experiência que vive no início da pandemia. Estava com um grupo de militares em Israel, em peregrinação, talvez umas 50 pessoas, todas elas ligadas às Forças Armadas e forças de segurança. Estávamos lá para iniciar a caminhada quaresmal e, curiosamente, foi quando o ‘boom’ da pandemia se instituiu e aquilo que lá verifique foi as Forças Armadas em ação. Além de serem muito competentes, foram muito rápidas nas decisões.

Quanto ao futuro, o grande desafio que se coloca às Forças Armadas do futuro é contribuir e colaborar para que a cultura do serviço seja uma marca da nova sociedade. Sou daqueles que acreditam – não seremos muitos – que a sociedade e a humanidade pós-pandemia vai um bocadinho diferente da sociedade pré-pandemia.

E uma das diferenças a que vamos assistir e participar ativamente é uma sociedade mais solidária, uma sociedade com maior espírito de cultura do serviço e nesse capítulo as Forças Armadas têm aí uma grande mensagem a transmitir, um grande serviço a prestar através do exemplo que já incrementam. Constatando a maneira abdicada como os nossos militares e as nossa forças de segurança realizam, agem, vivem isso vai contaminar a nossa sociedade.

Porque verificamos que a grande arma que a sociedade como um todo teve e tem e terá sempre para enfrentar estas adversidade é, para usar uma expressão do Papa Francisco, juntarmos todos as nossas mãos e dedicarmo-nos ao serviço do bem comum. E as Forças Armadas e as forças de segurança fazem disso a sua mística e o seu lema.

E ao nível do acompanhamento espiritual nestes tempos – seja cá, seja nas forças destacadas – teve obviamente limitações, mas também sentiu mais necessidade da presença do bispo e dos capelães das Forças Armadas?

O acompanhamento espiritual para todo o ser humano é fundamental e torna-se ainda mais importante quando estamos a falar de mulheres e homens que vivem focados no outro, as 24 horas do dia, vivem focados no bem dos demais, como tivemos, aliás, o exemplo cabal do que sucedeu no Rossio de S. Brás, em Évora, onde o nosso agente da PSP mostrou como ele envergava a mística, o serviço do agente de segurança 24 horas por dia.

Quando falamos de mulheres e homens que, durante todo o tempo da sua vida, estão em dedicação ao outro, é natural e normal que mais necessidade sintam de um acompanhamento, de cultivar a vida interior, da vida espiritual. É por essa razão que, quando a pandemia foi declarada e tivemos todos que ir para confinamentos, nós como diocese pusemos à disposição de todos o contacto de todos os capelães, todos os contactos possíveis e imaginários: desde o numero de telemóvel ao próprio endereço do capelão.

Nada substitui a presença física. Por isso, nas Forças Armadas, tudo fazemos, seja na instituição, seja na Igreja, para garantir que todo o militar tenha como referencial o capelão, esteja a agir em território nacional, seja no estrangeiro. Ainda há 15 dias partiu um capelão para a República Centro Africana onde irá permanecer durante várias semanas, exatamente para o acompanhamento espiritual. É uma presença fundamental.

E isto está visto e revisto, provado e comprovado: seja o elemento da força de segurança, seja o militar, dizem ao capelão, segredam ao capelão o que não dizem e não segredam a mais ninguém, sem sequer à pessoa com quem vivem permanentemente. Há ângulos, há nichos no interior de cada um que só capelão parecer a sintonização justa para escutar. Essa tem sido também a minha experiência.

É um acompanhamento espiritual que, para além de contribuir para o bem-estar do seu relacionamento mais harmonioso, tem muito a ver também com o estabelecimento do equilíbrio que o militar e o elemento da força de segurança têm de ter.

Falou do caso do Rossio de S. Brás em que esteve presente no funeral do agente da PSP que faleceu. O que se é que se diz às forças de segurança num momento como este em que ainda por cima estiveram envolvidos dois agentes de diferentes forças de segurança?

Levantou hoje de novo o esplendor de Portugal! Esta é a primeira palavra que digo. Com o exemplo, com a dádiva, com a entrega de um agente principal da PSP em que ele deu a vida, derramou o seu sangue para proteger uma mulher vulnerável, frágil que, naquela circunstância, era o retrato da nação, da pátria, então aquela dádiva foi o erguer-se bem alto o esplendor de Portugal.

Sinto que Portugal está ali retratado naquele gesto de completa entrega e doação de si próprio pelo outro, tanto mais que o outro é frágil. Levantou-se hoje de novo o esplendor de Portugal!

Outro caso que tem estado no centro das notícias é o caso do cidadão ucraniano que morreu nas instalações do serviço de estrangeiros e fronteiras no aeroporto de Lisboa. Como é que olha para esse caso?

Penso que todo o português sente, para já, uma certa vergonha. Aquilo sucedeu em território nacional, numa capital europeia do século XXI. E o que sucedeu foi tirar a vida a um ser humano, em circunstâncias ao que tudo indica hediondas.

Mas aquilo aconteceu no mesmo país que foi dos primeiros a abolir a pena de morte, num país que é herdeiro de um homem do caráter de S. Nuno de Santa Maria que no seu tempo se preocupava nas antevésperas e vésperas dos combates que travava se o adversário tinha tido a alimentação suficiente, se tinha as condições todas para estar bem.

Portanto, Portugal tem uma história de altruísmo, de acolhimento, de promoção da vida que qualquer português, pelo facto de o ser, sente-se tremer, perfurar o coração e a alma com a notícia hedionda do que sucedeu no aeroporto.

Mas não é só Portugal que está ali em questão: é a cultura ocidental. Somos herdeiros de uma cultura que, aliás, está bem retratada na Sagrada Escritura: curiosamente, o primeiro homem a ser chamado para formar a nova humanidade, o novo povo de Deus foi o Abraão, o estrangeiro, e os primeiros ditames que hoje consideraríamos em termos de doutrina social, foram emanados biblicamente para ir ao encontro do estrangeiro, do imigrante.

Depois, a Bíblia insistentemente tudo pauta, em termos de relacionamento para o bem comum, pelo "lembra-te que também fostes estrangeiro no Egipto". Portanto, a figura desse nosso irmão ucraniano é uma figura simbólica que retrata o Ocidente no seu todo como cultura e não ter sido capaz de prestar um acolhimento condigno a quem era imigrante isso põe em questão não só a mais são, nobre, humanista tradição de uma nação que é Portugal, mas põe em questão também esta nossa cultura ocidental: onde é que estamos a ir e porque é que estamos tão afastados e desfasados daquela que é a matriz por excelência cuja primeira atenção para a pessoa frágil e débil e necessitada de todo o nosso carinho e toda a nossa proteção é o estrangeiro.

Acha que uma situação destas acontece por falta de formação adequada, por falta de humanização, porque há elementos nas forças de segurança que estão nalgum tipo de deriva associada a movimentos inorgânicos? Encontra alguma explicação?

Não tenho capacidade para responder a essa pergunta. Houve um tempo em que o planeta Terra ficou submergido por grandes glaciares. Depois, entrou-se numa certa normalização em que o calor fez com que o gelo se derretesse. Ficaram alguns nichos no planeta. Graças a Deus, porque os polos são fundamentais para a vida.

O coração humano também é assim: o ser humano, com o nascimento de Jesus, que os primeiros padres da Igreja consideravam como o Sol, com a sua pessoa com a sua mensagem, com o seu amor e com a sua graça contribuiu para o descongelo dos gélidos glaciares que invadiram o ser humano, seja no coração, seja na alma, seja no pensar, seja nas palavras.

No entanto, aquilo que aconteceu à Terra – não obstante o calor tenha derretido muito gelo, ficaram sempre nichos de glaciares – isso aconteceu também com o ser humano. Ou seja, Jesus iluminou e aqueceu o nosso ser com o seu nascimento, com a sua Encarnação, no entanto, dentro do coração o ser humano – homem e mulher – permanecem ainda polos de gelo, frios.

E é essa frieza, são esses glaciares que cada um tem dentro de sei que justificam atitudes como aquelas que aconteceram no aeroporto. Porque é que aconteceu aquilo? Porque o ser humano ainda tem dentro de si grandes glaciares que necessitam de ser descongelados, derretidos.

O que é que as Forças Armadas e as forças de segurança precisam em 2021? O que é que têm necessidade e o que é que lhes deseja?

As mulheres e os homens das nossas forças de segurança e das nossas Forças Armadas não necessitam de muita coisa; necessitam sobretudo de sentir que o que eles deram, o que eles dão ao país, a todos nós – não querem aplausos, querem um simples reconhecimento.

Eles gostariam muito de ver a sociedade reconhecer o quanto é vital o aquilo que realizam e o que dão. Essa essencialidade mostrou-se, agora, em tempo de pandemia. Vamos aos Estados Unidos, vamos à França, vamos à Itália, que é uma realidade que conheço muito bem, e vemos ali que a sociedade, a cultura desses países tem um inato reconhecimento pela missão e valor que são das Forças Armadas e as Forças de Segurança.

Aqui em Portugal dá-me a sensação que, como um todo – não estou a apontar o dedo a ninguém – falta ainda essa cultura de reconhecer que a paz é um bem fundamental, a segurança é um bem essencial. Penso, mas isto não tem rigor científico praticamente nenhum, que ao contrário dos cidadãos da Itália, da Bélgica, da França, da Espanha, onde até há bem pouco tempo tínhamos pessoas que viveram na própria carne a presença da guerra no seu solo pátrio, nós aqui, graças a Deus, neste cantinho a terra e do céu, há quanto séculos é que fomos poupados e um conflito?

Não olhemos como coisa adquirida a paz e a segurança; é um projeto que todos os dias é necessário renovar e conquistar. Quem está na linha da frente para essa conquista e para essa renovação são das Forças Armadas e as forças de segurança. Portanto, olhemos com interesse, com gratidão, com reconhecimento o facto de sermos um país de paz e de segurança.

E o que é que a Igreja portuguesa precisa em 2021?

O que a Igreja portuguesa precisa em 2021 é aquilo que foi necessário na Igreja do primeiro século. Quando Jesus subiu ao céu e nos deu o dom do seu Espírito, o que fez a Igreja, qual foi o primeiro gesto? Escancarar as portas daquele Cenáculo, ir pelas estradas do mundo à procura de todo o ser humano para lhe dar esta notícia de que Deus nos ama infinitamente e loucamente.

A Igreja de Portugal e de todo o mundo necessita uma vez mais que as portas e as janelas e os muros dos nossos Cenáculos, onde por vezes estamos a fazer coisas interessantes e importantes, sejam derrubadas.

Escancarar – uso aqui a palavra que S. João Paulo II usou – escancarar as portas dos nossos cenáculos para ir pelas estradas do mundo ao encontro de todo o homem e de toda a mulher que é periferia. Levar-lhes o anúncio, fazer do mundo o laboratório e esperança, ser sal do mundo, ser a luz que ilumina os corações e as almas de todo o homem e de toda a mulher.