O sociólogo e politólogo britânico Colin Crouch diz que o tempo que vivemos “é excitante para se viver, mas ao mesmo tempo perigoso”, porque “o capitalismo e o liberalismo estão a canibalizar a democracia”.
De passagem por Portugal, para proferir uma conferência no ISCTE, Crouch falou à Renascença sobre o que mudou no mundo desde que, há mais de 15 anos, cunhou o conceito de “pós-democracia”, que identifica uma sociedade em que as instituições democráticas ainda existem, mas já não estão no centro do jogo de poderes.
Este professor da Universidade de Warwick, no Reino Unido, tem dedicado o seu trabalho às transformações que os regimes democráticos têm conhecido com o advento do neoliberalismo.
Crouch fala de várias crises: a do regime, a dos partidos e a da legitimidade democrática, e também dos caminhos que o populismo pode seguir. Não tem certezas quanto a este último fenómeno, mas adverte que devemos estar preparados para a surpresa.
Já passaram mais de quinze anos desde que deu forma ao conceito de pós-democracia. O que é a pós-democracia? E o que mudou no que considerou serem sociedades com características pós-democráticas?
É uma sociedade em que as instituições democráticas ainda funcionam, mas o centro da energia política já não está nelas, mas em pequenas elites. O que tinha em mente era qualquer coisa como uma sociedade pós-industrial. Quando falamos dela, não estamos a dizer que não há indústria, mas apenas que ela já não é o coração dessa sociedade.
Houve algumas mudanças importantes nos últimos anos. Algumas confirmaram as minhas ideias, nomeadamente, a maneira como a crise financeira foi gerida, revelando o enorme poder dos bancos sobre todos nós. Eles causaram a crise, mas a prioridade foi salvá-los.
A crise do euro de 2010 foi muito similar. Os países tiveram muito poucas alternativas na forma como lidaram com ela. Foram os grupos de burocratas e as elites económicas que lideraram as decisões.
E os populismos…
Creio que a palavra "populismo" é usada de forma muita leviana. [É] o nascimento de novos movimentos que olham para novas soluções porque as pessoas estão fartas dos partidos antigos. O Movimento Cinco Estrelas, que ganhou as eleições em Itália, é um exemplo disto.
E, depois, há um outro fenómeno que está ligado a isto, mas que não é a mesma coisa: os movimentos xenófobos. Nem todos os movimentos populistas são xenófobos, é importante dizer isto. Mas também é verdade que uma parte importante dos novos movimentos políticos são xenófobos. Isto é um choque para a pós-democracia, um choque para as elites que dominam. Isto é algo de novo e que levanta discussões.
A mudança dos centros de decisão política de que fala são irreversíveis? Se não são, como é que as instituições da democracia tradicional os podem recuperar?
Nunca devemos dizer que algo numa sociedade é irreversível, porque a capacidade que os seres humanos têm de inovar apanha sempre os intelectuais de surpresa. Temos de estar preparados para nos surpreendermos. Não devemos surpreender-nos com as surpresas.
O crescimento dos movimentos populistas pode levar-nos em duas direções e, neste momento, não estou certo de qual prevalecerá. Uma pode levar a que as elites existentes e os partidos tradicionais - democratas-cristãos, sociais democratas e liberais - olhem para o que se passa e pensem "fizemos alguns erros e este tipo de movimentos é perigoso para a nossa economia e para o bem da nossa cultura e das relações sociais precisamos de mudar".
Em alternativa, os movimentos de extrema-direita podem passar a dominar e solidificarem-se. Devido à dinâmica destes movimentos, ou estamos perante o início do expressar da raiva e ódio das pessoas ou talvez estes grupos acabem por ser dominados pelas elites que não são muito favoráveis à democracia.
Onde é que vê isso a acontecer com mais evidência?
Esta é uma matéria em que o Leste está a ser pioneiro em relação ao Ocidente. A Hungria, a Polónia, e a Rússia estão a demonstrar um poder que tem uma espécie de legitimação democrática, mas onde o que mais o legitima é um poder autoritário, e a intolerância em relação a todas as minorias, bem como o pouco respeito pelas leis. Na Europa de Leste já temos provavelmente instituições de pós-democracia que são fortes o suficiente para dar corpo ao que há de pior nestes regimes. No Leste, as instituições são muito fracas e o que estamos a ver é uma direção não só antidemocrática, mas também antiliberal.
É um critico do estado atual do capitalismo e do neoliberalismo. Acha que estão a canibalizar a democracia?
Gosto dessa expressão. Sim, no sentido em que um canibal come os seus iguais.
O capitalismo e as democracias liberais têm sido amigos próximos. Mas agora há o perigo de a nova forma do capitalismo estar a erodir a democracia, devido à intolerância que tem em relação a opções de políticas sociais alternativas.
E está numa posição muito complicada porque o liberalismo e a extrema-direita são muito diferentes, mas muitas vezes estão juntos. Donald Trump é um exemplo em que uma parte é liberal, quer impostos baixos, e a desregulação dos bancos e ambiental, mas ele também é muito protecionista. Isso para os liberais verdadeiros é um problema.
Na Europa, um continente em que os parlamentos nacionais estão a transferir poder para outras instituições, travar esse processo terá um impacto económico e social enorme. É realista imaginar que isso aconteça sem grandes conflitos sociais?
É aqui que chegamos, a uma das ambiguidades do populismo: não tem grande apreço pelo Parlamento, como vemos na Polónia e na Hungria. Em Inglaterra, com o “Brexit”, também se passa o mesmo, não só em relação ao parlamento, mas também em relação aos juízes. É um movimento a que chamamos plebiscito.
Se os parlamentos querem debater e os juízes querem decidir a legalidade, isso parecerá oposição à vontade das pessoas. É uma das razões pelas quais penso que a extrema-direita é um inimigo da democracia. Tende a não acreditar no debate, no compromisso, na tolerância.
A forma como pensam é “ganhamos e é o fim”. O meu país está a funcionar desta maneira. O parlamento é visto como o inimigo das pessoas. Não estou certo de que o retorno do poder aos parlamentos nacionais seja o caminho.
Porquê?
Será muito interessante ver o que acontece à Itália, que, por muitos anos, teve um problema de corrupção. E, por motivos que se compreendem, isso passou a ser algo usado para atacar os políticos.
Em Inglaterra, em que a corrupção será menor, o princípio do processo do “Brexit” começou com ataques à corrupção no parlamento. Isto fez com que as pessoas olhassem para os parlamentos como instituições más.
Não podemos culpar os populistas por isso, devemos apontar aos políticos por serem corruptos.
Mas se não se for por aí, que caminho teremos de seguir para relegitimar a democracia?
O que necessitamos é que de perceber em primeiro lugar que nenhum país, incluindo os Estados Unidos, pode resolver os problemas do mundo, quando somos confrontados com as alterações climáticas, e grandes alterações criadas, por exemplo, pela China.
Todos precisamos de alianças e instituições, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), ou o Fundo Monetário Internacional (FMI). São necessárias, e o que os governos nacionais precisam é de perceber que o seu papel se joga através do que fizerem junto destas organizações internacionais.
O problema é que os políticos gostam de proclamar que conseguem resolver as coisas pelas suas próprias mãos.
É muito difícil que eles admitam: "Está aqui um problema maior do que nós. Precisamos de trabalhar nisto em conjunto com outras nações amigas."
Temos de olhar mais para a política local e as políticas para as cidades e regiões. Temos de ter uma democracia de múltiplos níveis.
Já disse que partidos que nasceram depois da II Guerra Mundial estão numa crise profunda. Pensa que conseguirão resolvê-la, ou estamos num momento de mudança na paisagem política europeia?
As antigas lutas religiosas e de classe foram a base dos maiores partidos políticos na Europa. Nos Estados Unidos foi um pouco diferente, os partidos são resultado da Guerra Civil.
Mas as divisões sociais e religiosas que fundaram os partidos na Europa já não significam nada, em parte porque resolvemos os problemas, mas também porque a estrutura de classe mudou, e a religião está a perder influência na Europa. Os partidos estão sedimentados em identidades que já não fazem muito sentido para as pessoas.
As pessoas atualmente não têm identidades muito fortes, têm identidades, mas são múltiplas e complexas. A única exceção é a de uma ideia de nação que é a razão pela qual a xenofobia populista é tão importante. Para muitos é a única referência.
Acho que os partidos democratas-cristãos e social democratas nunca mais vão dominar o sistema como no passado e da maneira como o fizeram.
Não há nenhum partido que tenha garantia de vida eterna, estamos num mundo em profunda mudança.
Não serão então capazes de se reinventar?
Eles estão sempre a fazê-lo, e com um sucesso muito considerável. Mas não voltarão a dominar...
Quando olhamos para o que está a acontecer em Espanha, França e também na Grécia, só para citar alguns exemplos, acha que podemos falar de reinvenção?
Têm a capacidade de se adaptar e encontrar novos votantes, eles vão continuar, mas serão bastante mais pequenos. Se forem muito bem-sucedidos terão um terço dos votos. O espaço que criam faz aparecer novos partidos, instáveis. Vivemos num período de confusão e talvez de criatividade. Ainda não sabemos.
Não podemos esperar que o sistema politico criado depois de 1950 dure para sempre. Nada dura para sempre.
No artigo que escreveu "March towards post democracy ten years on", coloca uma questão interessante: "Será que os movimentos que dão origem a partidos vão salvar a democracia ou liderar campanhas para armadilhas pós-democráticas?" Tem agora ideias mais concretas sobre qual o caminho que vão seguir?
Não tenho. É uma questão e não é retórica. É real. Não sabemos. A paisagem partidária mudou na essência. Não haverá retorno à normalidade passada depois dos choques que houve. Mas ainda é muito cedo para perceber o que vai emergir. É um tempo excitante para se viver, mas ao mesmo tempo perigoso.
Em Portugal temos um governo de um partido de centro-esquerda apoiado por dois partidos de esquerda e que têm cumprido todas as metas da União Europeia e tem sido elogiado pelas instituições internacionais. As duas coisas são compatíveis ou paradoxais?
Penso que nos últimos 10 anos, as organizações internacionais estão a assumir posições da esquerda liberal, mais até do que os políticos locais. A primeira é porque são organizações internacionais, nunca podem seguir os xenófobos.
A segunda, porque aprenderam com alguns dos erros das posições fortemente liberais que adotaram em 1980 e 1990.
Que organizações?
A Organização para a Coopreação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o FMI, e o Banco Mundial, e não tanto a Organização Mundial do Comércio e a União Europeia.
Temos agora a OCDE que é uma instituição predominantemente neoliberal devido às mudanças que implantou no mercado laboral há 20 anos. Agora dizem que a maior ameaça no Ocidente é a desigualdade.
O FMI fala também do assunto e a OCDE a dizer que talvez tenha subestimado o impacto das reformas laborais.
Mas estamos no nível do discurso ou já passamos a medidas concretas?
Está tudo nos relatórios mais importantes que fazem.
Mas há políticas concretas?
Eles têm contradições, mas o que os fez aprender é que ao observaram a crise financeira, que foi um choque para o sistema que eles inventaram, o FMI e a OCDE perceberam que se os salários ficam estáticos e se a classe trabalhadora estiver insegura, a única forma de manter o consumo é pedir dinheiro emprestado.
Foi o que aconteceu nos EUA, na Inglaterra, Irlanda. O sistema financeiro dava dinheiro a estas pessoas pensando que nunca haveria uma crise, mas ela veio, e percebeu-se o quão insustentável era o peso das dívidas para os pequenos e médios devedores.
Mas o sistema precisa que essas pessoas consumam, e por isso se começou a olhar para a desigualdade e a segurança no trabalho.
Não é que de repente eles estejam a olhar para a desigualdade, apenas ela está a torna-se perigosa.
Mas o que vemos é que a desigualdade está a crescer em todo o mundo...
Estas instituições não olham para os problemas da mesma forma que o faziam. Elas têm em conta o valor da despesa pública, e da redistribuição dos impostos. A OCDE criticou a enorme redução da taxação de ganhos com capital.
Já não são as fortalezas do liberalismo. O papel delas no mundo está a mudar muito rapidamente nos últimos dez anos.
Como cidadão britânico como olha para o "Brexit" e para as consequências que tem para a Europa?
Estou desesperado com isso, por duas razões diferentes: que tipo de país é que decide abandonar uma relação económica que construiu ao longo de 43 anos sem saber o que fazer. Um país que é capaz de fazer isso, não é um país maduro e com instituições que funcionem.
Sempre fui um crítico, mas uma das coisas que me orgulhava era sermos um país maduro, cuja elite em limite sempre se comportou de forma sensata, mas já não acredito nisso. Estou, por isso, muito perdido.
Em segundo lugar, desde que acredito que temos de construir instituições que estejam acima dos estados-nação, para mim a União Europeia é o melhor exemplo. O caminho é reforçar o poder destas instituições.
Penso que a UE é um sinal de um futuro otimista e o meu país estar a enfraquecê-la deixa-me triste.