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A menos de duas semanas da discussão da proposta de lei da eutanásia, no Parlamento, membros das religiões com mais expressão em Portugal assinam uma declaração conjunta em que se mostram claramente contra a legalização deste ato.
Em entrevista à Renascença, Khalid Jamal, da Comunidade Islâmica de Lisboa, explica que no Islão, como nas outras religiões abraâmicas, a eutanásia é rejeitada, e lamenta o facto de a sociedade atual fugir dos conceitos de dor e sofrimento.
Como é que surgiu o desafio para participar nesta declaração conjunta?
Embora do ponto de vista estatístico a nossa comunidade seja pequena, não deixa de ser uma das religiões do livro e, portanto, fomos contactados no sentido de perceber qual é que é a nossa posição quanto a esta questão. Não só a posição do Islão – porque acho que aí as religiões são praticamente consensuais e unânimes em favor da vida – mas qual seria a posição que a comunidade islâmica poderia tomar numa discussão tão central como é a questão da eutanásia.
Foi difícil chegar a um consenso para a declaração?
Ela foi redigida de forma suficientemente ampla para que todas as religiões e todas as pessoas de fé se revissem nela. Penso que aqui o objetivo é, mais do que dar especial enfoque ao que nos diverge, enfatizar aquilo que nos une, que é o valor da vida, e penso que todas as religiões partilham desse mesmo ideal. Foi pacífico e relativamente fácil chegarmos a um texto relativamente consensual. Quero deixar aqui uma nota de especial agradecimento ao grupo cristão/católico, que tem uma influência especial, tendo em conta que são maioria, e normalmente é sempre quem toma a dianteira nestas questões.
Por vezes ouvem-se queixas de que, por ser de tal forma hegemónica, a comunidade católica esquece-se das confissões minoritárias.
Eu não partilho desta opinião. Daquilo que tem sido a minha experiência, e a da minha comunidade, os católicos e os cristãos são muito cooperantes com todos e pretendem envolver todos.
Neste caso concreto percebi que houve especial preocupação para que isto tivesse uma representatividade diferente. Trata-se de unir as religiões em torno de um propósito comum. Portanto isto acaba por ter um efeito simbólico e muito mais impactante do ponto de vista da sociedade civil, com efeitos na discussão pública que se está a ter sobre o tema da eutanásia. E é preciso não esquecer, e deixar bem claro, que não se trata de um tema ideológico ou partidário, o tema é muito mais importante do que isso.
Estamos a falar de uma questão central, um tema que coloca em causa a nossa vida, e é evidente que as religiões têm uma abordagem e uma visão semelhante em relação a isto. Todos nós defendemos o mesmo, que a vida é um dom, dado por Deus, e é algo que não é só indissociável do ser humano, é algo de que não se pode dispor. O ser humano não dispõe dessa vida, independentemente de ele ter o seu livre arbítrio, que é um dom e uma faculdade concedida por Deus. Nós podemos dispor de tudo, com exceção da vida. A vida é absoluta.
Para mim, isto seria um não-tema. Não consigo perceber como é que se pode discutir um tema destes, em que, para mim, a resposta é clara.
Porém tem-se discutido, tem havido debate. O que acha do debate político que se tem realizado?
Tenho estado naturalmente atento aos debates. Sabemos que os paradigmas societários mudaram muito de há uns anos a esta parte. Do ponto de vista social - penso que não seja a maioria da sociedade – existe a convicção de que a vida é algo que é posse nossa, que eu tenho um direito de propriedade em relação à minha vida. Ora isto, do ponto vista religioso, oferece as maiores dúvidas. Eu estou em crer – e o Islão assim o define – que nós não dispomos da nossa vida, que é Deus quem define o início e o fim da nossa vida.
Depois há mais uma questão que é importante, que é em relação ao próprio sofrimento. Vivemos numa sociedade que pretende negar a questão do sofrimento. O sofrimento faz parte das sociedades. O sofrimento é intrínseco, indissociável da natureza humana. Só conseguimos perceber o que é o bem porque tivemos a noção do mal. Só conseguimos perceber o que é uma vida feliz e saudável se tivermos noção da doença. Estou absolutamente convicto de que, mesmo numa situação de sofrimento exacerbado, não vale dizer que não à vida e dizer que sim à morte.
É relativamente raro ver membros da comunidade muçulmana a tomar posição pública sobre questões fraturantes como esta.
Ainda há desconhecimento generalizado de alguns dos muçulmanos sobre estas questões, mas a esmagadora maioria dos muçulmanos não vê isto como uma questão passível de discussão. Isto é claro para nós. Deus dá-nos a vida, Deus tira-nos a vida. Acho que essa é a principal razão pela qual, muitas vezes, os muçulmanos ou são convidados a participar e não participam ou nem se sentem interessados em fazer esse debate público.