25 set, 2018 - 21:20 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Se alguém ainda tivesse dúvidas sobre a política externa de Donald Trump, o Presidente norte-americano encarregou-se de as dissipar no discurso perante a 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas.
Foi um discurso feito num tom mais sereno do que o do ano passado, marcado pela agressividade, sobretudo em relação à Coreia do Norte, cujo líder foi apelidado de “homem-foguetão”.
Desta vez, Trump poupou Kim Jong-un, afirmando-se esperançado num acordo de desnuclearização da Península Coreana, mas não poupou quase mais ninguém nem mais nada. Atacou as organizações multilaterais como a ONU, a Comissão de Direitos Humanos, a Organização Mundial do Comércio, o Tribunal Penal Internacional, a Organização dos Países Exportadores do Petróleo (OPEP), para exortar os países a não se submeterem às diretivas delas e a definir a sua própria política “soberana e independente”.
Para Trump esse é o futuro - cada um definir o seu caminho porque só assim o mundo melhorará. E que exemplos encontrou para ilustrar a sua tese? Quatro países que na sua opinião brilham neste momento no mundo: a Índia, a Arábia Saudita, a Polónia e Israel. “O mundo está melhor, a humanidade mais rica, graças a esta constelação de países que prosseguem a sua visão e o seu caminho”, proclamou.
Isto dito num contexto em que ignorou por completo os aliados tradicionais dos Estados Unidos — o único que referiu foi a Alemanha para criticar o facto de investir num gasoduto que trará gás da Rússia —, insistiu na necessidade de os países pagarem pela sua própria defesa e avisou que os EUA só irão contribuir a partir de agora para países “amigos”, deixa no ar a hipótese desta administração estar mesmo a equacionar uma radical alteração na política de alianças. Os EUA passariam a privilegiar aqueles países que definem como “amigos” e cujo rumo político Trump entende ser o correto em detrimento dos aliados tradicionais na NATO e na União Europeia.
Uma espécie de coligações ad-hoc baseadas em afinidades ideológicas (ou supostamente ideológicas) de países que privilegiariam a soberania nacional em detrimento da globalização. Aliás, Trump fez questão de dizer que os EUA são “contra a ideologia do globalismo e pela doutrina do patriotismo”.
A ideia de rever as alianças à medida das conveniências não é nova. Na década passada, em pleno cisma entre os aliados europeus dos EUA acerca da invasão do Iraque, Donald Rumsfeld, o então secretário da Defesa do Presidente George W. Bush, cunhou uma frase que ficou célebre: “a missão faz a coligação”. Queria ele dizer que os EUA não devem ficar presos aos aliados tradicionais da NATO, por exemplo, quando há divergências significativas entre eles sobre uma determinada missão internacional. Em vez de procurarem escutar e sanar divergências, devem avançar nas suas missões levando consigo apenas aqueles países que concordam com eles. E foi isso que, em certo sentido, aconteceu na invasão do Iraque em 2003. Enquanto países como Portugal, Espanha, Reino Unido e Itália alinharam na missão, Alemanha e França demarcaram-se e rejeitaram a iniciativa americana.
Neste caso a mudança seria mais radical, obviamente, porque Trump cita quatro países com valores e credenciais democráticas altamente discutíveis. A Índia é denominada a maior democracia do mundo, mas a sociedade indiana está ainda hoje condicionada por um sistema de castas que nada tem de democrático. A Arábia Saudita é um dos regimes mais fechados do mundo e onde a violação dos direitos humanos é mais flagrante. Basta lembrar que só este ano as mulheres começaram a ter autorização para conduzir automóveis. Israel, sendo a única democracia no Médio Oriente, está a construir um Estado de base racial, cada vez mais judaico e menos aberto aos israelitas de origem árabe. A Polónia, sendo uma democracia jovem, está hoje a limitar a independência do poder judicial e a constranger a liberdade de imprensa. Atitudes que lhe mereceram um processo da União Europeia que pode conduzir a sanções idênticas às que foram aprovadas à Hungria.
Mesmo na lógica de Trump, a invocação da Arábia Saudita é a mais estranha. Pouco antes, o Presidente americano tinha criticado com veemência os países da OPEP, acusando-os de estarem a “roubar” o resto do mundo, a subir os preços do petróleo e ainda por cima a fazer outros países pagar pela sua segurança. Ora, se há país a quem a crítica assenta como uma luva é justamente a Arábia Saudita.
Porém, a coerência é algo que não abunda em Donald Trump, como se sabe. A dado passo, ao invocar a imigração disse que a melhor forma de a reduzir era financiar o desenvolvimento dos países donde provêm os imigrantes, para pouco depois anunciar que os EUA vão reduzir o seu financiamento em ajuda internacional.
Trump escolheu o palco do multilateralismo por excelência — as Nações Unidas — para lançar o seu manifesto unilateralista. A começar pelas críticas duras à ONU e a organismos que lhe estão ligados, como o Tribunal Penal Internacional, cuja jurisdição os EUA se recusam a aceitar, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, que os EUA acabam de abandonar, a Organização Mundial do Comércio, a quem acusou de não cumprir as suas próprias regras e incitou os países a combatê-la, as operações de manutenção de paz da ONU, das quais disse que os EUA não financiariam a mais do que 25%.
Tudo que tenha laivos de multilateral, Trump detesta. E aqui se inclui a “imigração ilegal”, que voltou a associar à droga, ao crime e ao tráfico humano, e o comércio internacional, que culpou pela perda de milhões de empregos nos EUA. Neste aspeto, o presidente americano manteve a coerência, como a manteve ao atacar o Irão e a Venezuela em termos muito duros, anunciando o reforço de sanções a ambos os países.
“Os EUA optarão sempre pela independência e cooperação sobre a governação global, controlo e dominação. Não seremos governados por um organismo internacional que não presta contas aos nossos cidadãos”, afirmou, para sublinhar constantemente as virtudes da soberania nacional e exortar todos os outros países a fazer o mesmo.
No final do discurso, o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, não aplaudiu. Interrogado pelos jornalistas sobre a razão da omissão, Marcelo Rebelo de Sousa enumerou o registo do país no domínio do multilateralismo que carateriza a nossa política externa — a União Europeia, a NATO, a CPLP — e o apoio de Portugal à política oficial das Nações Unidas e à ação do seu secretário-geral, António Guterres, em defesa da cooperação internacional, do diálogo para a resolução dos conflitos e do desenvolvimento sustentável. Princípios que Donald Trump não subscreve, mas em que Marcelo fez questão de mostrar orgulho.